quinta-feira, 1 de fevereiro de 2007

Fajã, Faião, Fajães, Fajão, Fajões. Todos parentes? Nem por isso

Fajã é "toda a área de terreno relativamente plana, susceptível de albergar construções ou culturas, anichada na falésia costeira entre a linha da preia-mar e a cota dos 250 m de altitude". A definição é oficial, para a Região Autónoma dos Açores, cujo parlamento achou por bem consagrá-la no Decreto Legislativo Regional n.º 32/2000/A (Wikipédia, s.v. "Fajã"). E é bem longo o rol de topónimos açorianos em que entra o apelativo "fajã", quase sempre elemento genérico de uma expressão toponímica.
Numa obra de referência para os assuntos madeirenses, com primeira edição datada de 1921, podemos ler que se dá
"na Madeira o nome de "Fajãs" a certos tractos de terreno, de maior ou menor extensão, formados pelo desmoronamento de terras situadas a montante, constituindo em geral um solo de notável fertilidade. As "Fajãs" formam-se tanto no interior da ilha pelo desabamento de terras que se desagregaram das vertentes das montanhas, como ao longo de toda a costa marítima, de que são frisantes exemplos uma parte considerável da freguesia do Jardim do Mar, o Lugar de Baixo, a Fajã dos Padres, a Fajã da Areia, e ainda outras. O termo "Fajã" é em geral usado toponimicamente e existem dezenas de sítios que têm o nome de Fajã de...» (Silva & Meneses, 1978: v.2, p.).
Para além dos arquipélagos da Madeira e dos Açores, também encontramos o topónimo em Cabo Verde, como é o caso de Fajãzinha, vila do município de Mosteiros, e de Fajã de Água, vila na ilha da Brava.
O topónimo tem por base um apelativo ainda vivo nos arquipélagos atlânticos, correspondendo a uma formação popular que resultou da aglutinação de um substantivo e do adjectivo que o qualificava.
Começando pelo substantivo, referimo-nos à voz faixa "pedaço longo e estreito de terra" (Houaiss), "porção de terra estreita e longa" (Machado)", do latim fascia, que ainda hoje o povo pronuncia faxa, fenómeno já documentado no século XIV (Nunes, 1989: 80). À referida fala portuguesa corresponde o espanhol haza "porción de tierra labrantía o de sembradura" (Academia), o catalão feixa "peça de terra de conreu en forma de terrassa, construïda amb marges de pedra seca als vessants muntanyencs" e as formas aragonesas faixa e feixa "trozo de tierra largo y estrecho, campo de reducidas dimensiones", ainda hoje muito produtivas na toponímia e microtoponímia locais (Selfa Sastre, 2000: 132-133 e 289). É possível que alguns topónimos galegos Facha(s) respondam à mesma realidade, principalmente as ocorrências bastante afastadas da costa marítima, o que só pode ser confirmado localmente.
O adjectivo que qualificava "faixa", a responder à definição com que iniciámos esta entrada — "área de terreno relativamente plana" —, seria naturalmente o feminino chã.
Assim, da primitiva faixa chã, "faxa chã" na boca do povo, que a oralidade aglutinaria em *faxachã, teria resultado *fachã, por haplologia a impedir a cacofonia, e, desta última, por sonorização da palatal surda -ch- na sonora -j-, fenómeno facilitador da articulação, teríamos chegado à actual "fajã".
Esta voz deve ter entrado nas Canárias através do arquipélago da Madeira, existindo ali como apelativo da mesma realidade, sob a forma castelhanizada "fajana", significando "terreno llano al pie de laderas o escarpes y formado comúnmente por materiales desprendidos de las alturas que lo dominan" (Academia).

Quanto a Faião, estamos perante um antropónimo que recua à presença muçulmana na Península, continuando hoje vivo como apelido. Faião, lugar da freguesia de Terrugem, concelho de Sintra, e possivelmente Alfaião, freguesia do concelho de Bragança, a "parrochia Sancti Martini de Alfayãa" das Inquirições afonsinas de 1258, terão sido propriedades de um "(al) Fayam" (Pereira, 1998: 217), antropónimo hispano-árabe derivado do hipocorístico Hayyiun, de hayy "vivo" (Terès, 1990: 170). Mas já a Quinta do Faião, no concelho de Sernancelhe, é ou foi património de uma família Faião, ou não fosse ali proprietário o Eng.º Manuel Faião, como prova a acta n.º 24 de 10 de Novembro de 2006, da câmara do referido concelho (e viva o Google!). A origem árabe de "Faião" escapou a Joseph Piel (1937: 101) e Almeida Fernandes (1999: 285) que, embora com algumas divergências integraram este topónimo no grupo que a seguir vamos tratar.
Outra origem terão os topónimos Faiões, freguesia do concelho de Chaves, a "villam que dicitur Faiones" de um documento de 1145 do Liber Fidei da Sé de Braga (Costa, 1959: vol. 2, p. 428), Fajão, freguesia do concelho da Pampilhosa da Serra, e Fajões, lugar da freguesia de Cesar, concelho de Oliveira de Azeméis, o "Faiones" de 1265 (Durand, 1971: 274). Considerando as formas medievais conhecidas, estaremos em presença de topónimos formados a partir do nome germânico dos respectivos possessores que, nos casos em apreço, poderá ser o antropónimo Fagila, documentado na Galiza e em Portugal (séc. X), um hipocorístico de *fahs "alegre". Os nomes masculinos germânicos, terminados em -a, tenderam a latinizar em -us ou romanizar em -o, neste caso com o genitivo em -onis. Desta forma, uma villa Fagilonis daria sucessivamente *Fagiones (síncope do -l- intervocálico), Faiones (síncope do -g- do grupo -gi- intervocálico, como em regina > rainha) e Faiões (síncope do -n- intervocálico e nasalação do -o-, sendo Fajões uma evolução de Faiões (consonantização). Em Fajão temos a mesma origem, não a partir do genitivo, mas do caso oblíquo, o acusativo Fagilone-.

Bibliografía:
ACADEMIA ESPAÑOLA, Real (1992) — Diccionario de la lengua española. 21ª ed. Madrid: Espasa. 2 vol.
CELDRÁN, Pancracio (2002) — Diccionario de topónimos españoles y sus gentilicios. Madrid: Espasa. XVIII, 1059 p. ISBN 84-670-0146-1.
COSTA, Avelino de Jesus da (1959) — O bispo D. Pedro e a organização da diocese de Braga. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. 2 vol.
CUNHA, António Geraldo da (coord.) (2002) — Vocabulário Histórico-Cronológico do Português Medieval. 2ª ed. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa/Ministério da Cultura. ISBN 85-7004-237-X. Em cd-rom.
DURAND, Robert (ed.) (1971) — Le Cartulaire Baio-Ferrado du Monastère de Grijó (XIe-XIIIe siècles). Int. et notes de Robert Durand. Paris: Fundação Calouste Gulbenkian / Centro Cultural Português. LV, 330 p. (Fontes Documentais Portuguesas; 2).
FERNANDES, A. de Almeida (1999) — Toponímia Portuguesa: Exame a um dicionário. Arouca: Associação para a Defesa da Cultura Arouquense, 1999. 576 p. ISBN 972-9474-13-3.
HOUAISS, Antônio [et al.] (coord.) (2001) — Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Objetiva. ISBN 85-73-02396-1. Em cd-rom (ferramenta de alto nível). Existe edição portuguesa em suporte papel, 6 vol., Círculo de Leitores (que bom seria se também existisse em cd-rom).
MACHADO, José Pedro (Coord.) (1991) — Grande Dicionário da Língua Portuguesa. 2ª ed. Lisboa: Publicações Alfa. 6 vol. ISBN 972-626-035-3.
NUNES, José Joaquim (1989) – Compêndio de Gramática Histórica Portuguesa: Fonética e morfologia. 9ª ed. Lisboa: Clássica Editora. XVI-454 p. ISBN 972-561-172-1.
PEREIRA, Gabriel (org.) (1998) — Documentos históricos da cidade de Évora. [Lisboa: s.n., 1998]. 3 pt. em 1 vol. Reprodução fotocopiada da ed. de Évora: Typ. da Casa Pia, 1885-1891.
PIEL, Joseph M. (1937-1945) — Os nomes germânicos na toponímia portuguesa. Lisboa: Centro de Estudos Filológicos. 2 vol., 303 p.
PIEL, Joseph M. (1947) — Nomes de lugar referentes ao relevo e ao aspecto geral do solo (Capítulo de uma toponímia galego-portuguesa). Revista Portuguesa de Filologia. Coimbra: Casa do Castelo, Editora. Vol. 1, nº 1 (1947), p. 153-196.
SELFA SASTRE, Moisés (2000) — Toponimia del Valle Médio del Ésera (Huesca): Estudio lingüístico y cartografia. Lleida: Universitat de Lleida, 2000. 308 p. Tese de doutoramento. Em linha no endereço (página de apresentação, com ligação aos diferentes capítulos.
SILVA, Fernando Augusto da; MENESES, Carlos Azevedo de (1978) — Elucidário madeirense. 4ª ed. Funchal: Secretaria Regional da Educação e Cultura. 3 vol. 1º vol.: A-E, 413 p.; 2º vol.: F-N, 448 p.; 3º vol.: O-Z, 413 p.
TERÉS, Elias (1990-1992) — Antroponimia hispanoárabe (Reflejada por las fuentes latino-romances). Ed. Jorge Aguadé, Carmen Barceló y Federico Corriente. Anaquel de estudios árabes. Madrid: Universidad Complutense. Nº 1 (1990), p. 129-186; nº 2 (1991), p. 13-34; nº 3 (1992), p. 11-35. ISSN 1130-3964
VASCONCELOS, José Leite de (1931) — Opúsculos. Volume III: Onomatologia. Coimbra: Imprensa da Universidade. p. 420
WIKIPÉDIA, s.v. "Fajã", no endereço http://pt.wikipedia.org/wiki/Faj%C3%A3

2 comentários:

cneirac disse...

Na Galiza existe ainda o apelido "Alfaya", quizá correspondente a unha forma castelanizada de "Alfaia". Pódese ver a sua distribuiçom geográfica aqui: http://servergis.cesga.es/website/apelidos/viewer.asp

Manuel Carvalho disse...

Grato pela achega e pelo endereço, avanço com outra achega que, apesar de me parecer bem fundamentada, não passará de mera hipótese.
Na minha opinião, o apelido "Alfaia" não pertencerá a nenhuma das famílias abordadas nesta postagem e terá tido a sua origem no romance castelhano.
O espanhol "alfaya", do hispano-árabe "alháyya", e este do árabe clássico "hay'ah", "excelência ou qualidade superior, distinção", terá entrado na onomástica como alcunha, passando depois a apelido. Tem pois origem num nome comum e não na antroponímia árabe. O apelido, que significa "pessoa distinta, de excelentes qualidades", terá passado de Castela para a Galiza e Portugal e, da Península, para a América Latina. E aqui teremos porventura a primazia (falo de Portugal e Galiza), ou não sejamos nós um povo de emigrantes.
Mas, pensando melhor, e olhando para o homem ibérico dos finais da Idade Média e Antigo Regime, não ficaria surpreendido se a alcunha "Alfaia" se referisse à aparência do nomeado e não às suas qualidades morais. Neste caso, o "Alfaia" corresponderia a um indivíduo "presunçoso", "peralvilho", "janota", "presuntuoso", "presumido".
Um abraço de
Portugal