terça-feira, 16 de janeiro de 2007

Os Vales de Aveiro

O apelativo "vale", do latim valle- (feminino), é uma das vozes mais produtivas na toponomástica da área do concelho de Aveiro, onde a encontramos sobretudo em expressões toponímicas, ocupando quase sempre a primeira posição, seguida de complemento preposicional que qualifica ou determina a posse. Apesar da baixa altitude média do concelho aveirense, não será de estranhar esta profusão, considerando os numerosos arroios, ribeiros e riachos que, um pouco por toda a parte, caracterizam a paisagem desta zona, escorrendo para as águas da laguna e do Vouga que abraçam o miolo do aro municipal a Leste, Norte e Oeste.
Falar de "vales" é falar de uma antiga realidade económica e sócio-cultural, detectável, em toda a sua pujança, nas serranias do Norte de Portugal, Galiza, Astúrias e Cantábria, prolongando-se pelos Pirinéus. O "vale" tinha a água e a terra de aluvião, indispensável à fixação das populações que aí procuravam o habitat propiciador da actividade agro-pastoril. Estes acidentes orográficos que, nas montanhas do Norte, atingem por vezes grandes dimensões, individualizaram-se socialmente através do assentamento de diferentes subunidades da organização étnica indígena,

[…] ligadas por parentesco real o mítico, que vivían bajo una norma — o codigo consuetudinario — y se autoregían mediante la convocatoria de sus proprias reuniones o asambleas (Diez Herrera, 1993: 10).

Isto mesmo transparecia na zona portuguesa do Gerês, nomeadamente na desaparecida comunidade de Vilarinho da Furna, estudada por Jorge Dias.
Na região de Aveiro estamos perante uma realidade necessariamente diferente, considerando a pequenez da área, embora seja possível identificar idiossincrasias marcadas e específicas, podendo corresponder a individualidades étnicas distintas que, durante a Idade Média, foram em parte respeitadas no enquadramento promovido pelo domínio senhorial e pelo cristianismo.
Os dois poderes, o da terra e o da alma, raramente separados e bastas vezes coabitando, encabeçaram numa "vila" as instituições que entreteceram esses vales numa unidade política e religiosa. O primeiro mostrava-se na casa ou no celeiro senhorial, e nas magistraturas que o representavam, enquanto o segundo se exprimia através da paróquia, da respectiva igreja e do presbítero que a dirigia. A importância deste pequeno mundo ligava-se ao espaço de circulação de pessoas e bens que, nestes tempos recuados, raramente ultrapassava o aro paroquial, mesmo na região do Baixo-Vouga, em que o rio e a laguna possibilitavam uma maior aproximação entre as populações.
Por vezes o poder senhorial violentava esta harmonia primitiva, mas aqui vingava a organização religiosa, a respeitar os contornos culturais das antigas divisões. Em conclusão, podemos afirmar que a vida dos homens medievais, no território do actual concelho de Aveiro, girava politicamente em torno das "vilas" de Aveiro, Esgueira, Eixo e Arada, mas, em termos sociais e culturais, eram as paróquias que dominavam. E aí, para além destas "vilas", teríamos de acrescentar a paróquia de Cacia e, mais tarde, mesmo quando a independência não é completa, as de Eirol, Nariz e Requeixo. Teremos de considerar ainda outros ajustamentos, como, a título de exemplo, a inclusão de Verdemilho (no poder temporal anexo a Ílhavo) na paróquia de Arada, e de Sá (também ligada senhorialmente a Ílhavo) meã das paróquias de Aveiro e de Esgueira.
Em muitos casos estes "vales" integram-se numa bacia hidrográfica secundária, o que os liga entre si, facilitando os contactos, como acontece em Eixo, onde o "Vale da Granja" ramifica com o "Vale do Picoto", o "Vale da Alfândega" com o "Vale do Cabeço Redondo" e com o "Vale do Salgueiro", o "Vale do Suão" com o "Vale das Forcadelas" e o "Vale de Azurva" com o "Vale da Quinta da Velha" (vd. Vieira, 1984: 51). Por vezes estes vales tinham uma pequena dimensão, estando na posse de uma única família e constituindo, em termos económicos, uma unidade agrícola equiparada ao "casal".

Alguns exemplos recolhidos no concelho de Aveiro, com as respectivas freguesias entre parênteses:
Cabeço do Vale (Eirol), Cabeço do Vale de Salgueiro (Eixo), Chousa do Vale Caseiro (Cacia), Encostas do Vale do Rio (Oliveirinha), Quinta do Vale dos Ferreiros (Eixo), Quinta do Vale do Suão (Eixo), Tomadia do Vale da Fontinha (Eirol), Valbum (Esgueira), Valduja (Cacia), Vale (Aradas, Cacia, Eirol, Esgueira, Nariz, Oliveirinha, Requeixo), Vale(s) (Cacia, Esgueira), Vale dos Adobos (Eixo), Vale dos Adros (Eixo), Vale da Aguanada (Requeixo), Vale da Alagoa (Eirol), Vale da Alfândega (Eixo), Vale da Andreza (Requeixo), Vale do António (Nariz), Vale de Arada (Aradas), Vale do Arrujo (Eixo), Vale das Azenhas (Aradas), Vale da Azurva (Eixo), Vale de Baixo (Glória), Vale do Barrêga (Aradas), Vale do Borraçal (Oliveirinha), Vale do Braçal (Eixo), Vale do Braga (Cacia), Vale do Branco (Aradas), Vale da Brogueira (Esgueira), Vale do Bunheiro (Eixo), Vale dos Cabaços (Eixo, Oliveirinha), Vale da Cabana (Requeixo), Vale da Cana (Oliveirinha), Vale da Canisieira (Eixo), Vale do Carvão (Esgueira), Vale do Caseiro (Cacia), Vale do Castanheiro (Requeixo), Vale da Catarina (Eirol), Vale de Cavadas (Eixo), Vale de Cavalos (Requeixo), Vale do Clérigo (Aradas), Vale do Cojo (Vera Cruz), Vale de Colmeias (Esgueira), Vale da Cova (Oliveirinha), Vale do Covo (Cacia), Vale dos Covões (Eirol), Vale Diogo (Oliveirinha), Vale Escuro de Verba (Nariz), Vale de Esgueira (Esgueira), Vale do Ferreiro (Eixo/Requeixo), Vale da Fonte (Eirol, Nariz, Oliveirinha), Vale da Fontela (Oliveirinha?), Vale da Fontinha (Eirol/Eixo, Esgueira), Vale das Fontinhas (Requeixo), Vale do Forro (Nariz), Vale da Galinha (Requeixo), Vale da Gamela (Requeixo), Vale do Godinho (Cacia), Vale Grande (Eirol, Esgueira, Requeixo), Vale da Granja (Oliveirinha), Vale da Horta (Oliveirinha), Vale do Inferno (Eirol), Vale das Janeirinhas (Eixo), Vale de Janeiro (Eixo), Vale de João dos Santos (Aradas), Vale do Junco (Cacia, Nariz), Vale das Ladeiras(os) (Nariz), Vale da Ladra (Requeixo), Vale da Lagoa (Eirol), Vale do Largo (Cacia), Vale da Lavoura (Eirol), Vale da Lebre (Oliveirinha), Vale da Lagoa do Junco (Eixo, Esgueira), Vale da Lenda (Nariz), Vale do Lino (Oliveirinha), Vale da Loba (Requeixo), Vale de Loure (Eixo), Vale da Marinha de Cima (Esgueira), Vale da Marinha de Fundo (Esgueira), Vale de Marinhas (Esgueira), Vale do Marona (Aradas), Vale da Moita (Oliveirinha), Vale da Mula (Nariz), Vale do Olho (Requeixo), Vale do Parrêlo (ou Passêlo?) (Requeixo), Vale do Pato (Requeixo), Vale de Pedras (Esgueira), Vale Pequeno (Eixo), Vale da(o) Pereira (Esgueira), Vale de Pero Giro (Esgueira), Vale do Picanço (Requeixo/N.Sª Fátima), Vale de Pinheiros (Eixo), Vale do Pombo (Oliveirinha), Vale da Quinta (Aradas, Requeixo), Vale da Rama (Nariz, Requeixo), Vale do Ramil (Glória), Vale de Ratinha(s) (Esgueira), Vale do Rato (Nariz), Vale do Rendeiro (Aradas, São Bernardo), Vale de Ribeirinho (Eixo), Vale do Rio (Oliveirinha), Vale Rondeiro (São Bernardo), Vale de Sá (Esgueira), Vale Salgado (Esgueira), Vale de Salgueiro (Eixo), Vale de São Pedro de Aradas (Aradas), Vale do Seixo (Requeixo), Vale das (C)Silhas (Cacia), Vale do Sobreirinho (Oliveirinha), Vale do Suão (Eixo/Requeixo), Vale de Taipa (Eixo), Vale das Tenças (Eirol), Vale dos Tojos (Esgueira), Vale das Tomadias (Eirol), Vale da Valida (N.Sª Fátima), Vale Ventoso (Eixo), Vale da Videira (Eirol), Vale de Vilar (Glória), Valinho (Esgueira, Oliveirinha), Valinhos (Aradas, Nariz, Requeixo).

Bibliografia:
DIAS, Jorge (1981) — Vilarinho da Furna: Uma aldeia comunitária. Nota prelim. e pref. de Orlando Ribeiro. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1981. 313 p. (Temas Portugueses).
DIEZ HERRERA, Carmen (1993) — El "valle" unidad de organización social del espacio en la Edad Media. Estudos Medievais. Porto: Centro de Estudos Humanísticos. N.º 10 (1993), p. 3-32.
VIEIRA, Venâncio Dias de Figueiredo (1984) — Memória sobre a vila de Eixo. Boletim Municipal de Aveiro. Aveiro: Câmara Municipal. Nº 3 (Abril 1984), p. 30-64. Memória redigida cerca de 1870.

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