sábado, 5 de maio de 2007

Toponímia de Vila Nova de Gaia (1): Gaia

O território em que se inscreve o actual concelho de Vila Nova de Gaia sobressai pelas roupagens toponímicas com que veste os seus povoados, rios, montes, vales e tantos outros acidentes geográficos que o homem nomeia, para que a sua pequenez se não perca na vasteza terrestre que o acolhe.
Por isso, qualquer levantamento toponímico da região, mesmo que circunscrito a um pequeno corpus, com algumas dezenas de topónimos, mostra, desde logo, um povoamento milenar e complexo, dificilmente avaliável em toda a sua riqueza cultural, considerando a profundidade das raízes que, aqui e ali, se deixam entrever.
No que se refere à sede do concelho, parece que hoje ninguém duvida da impossibilidade fonética de fazer nascer "Gaia" de "Cale", o que nos obriga a procurar outros caminhos.

Almeida Fernandes pretende encontrar Gaia num documento controverso, datado de 922, já referido na nossa primeira postagem, apresentando a leitura "[…]
et inde per montem a termino de Colimbrianos usque in Galia" (GEPB, vol. 35, p. 671b). Desta Galia teria nascido a nossa Gaia, por queda do -l- intervocálico. Mas, como já afirmámos na postagem atrás referida, o documento em questão poderá corresponder a uma cópia deturpada e com interpolações, como parece resultar da leitura dos editores do Livro Preto da Sé de Coimbra, que leram Gal e não Galia na passagem transcrita (ver aqui, quinto e último texto em destaque).
Na
Chronica Gottorum, no item referente a 1140, era MCLXXVIII (era de César ou era Hispânica), encontramos uma referência a Gaia, sob a grafia Gaye (por Gayae, genitivo):
Eodem quoque tempore venerunt quedam naves exinsperato de partibus Galliarum, plene armatis viris votum habentes ire in Jerusalem, cumque venissent ad Portum Gaye & intrassent Dorium (…) [Inesperadamente, nessa mesma altura, também chegaram alguns navios provenientes das Gálias, cheios de homens armados que tinham feito voto de ir a Jerusalém. E como tivessem vindo ao porto de Gaia e tivessem entrado no Douro (…)](Pimenta, 1982: 35).
No século XIII eram dois os principais povoados da margem esquerda da foz do Douro: Gaia, o mais importante em termos económicos, e o chamado Burgo Velho, historicamente mais antigo, mas com uma vida económica que orbitava em torno do primeiro. Gaia recebeu foral em 1255, no reinado de D. Afonso III, aparecendo nomeada neste documento, mais de duas dezenas de vezes, com a grafia Gaya ou Villa de Gaya.
Em 1288 será a vez de D. Dinis conceder carta de foral ao
Burgo Velho, nos termos do foral de Gaia, ao mesmo tempo que mudava o nome da povoação para Vila Nova de Rei:
loco qui consuevit vocari Burgum vetus, cui imponimus de novo nomem villa nova de Rey" [lugar que era costume chamar-se Burgo Velho, ao qual impomos o novo nome de Vila Nova de Rei].
Ainda no mesmo século, num documento do mosteiro de Grijó, datado de 1264 e referido a Oliveira do Douro, pode ler-se: "hereditatem que est in parrochia ecclesie de Ulveira in ripa Dorii, justa castellum de Gaia" (Durand, 1971: 277).
Quanto a nós, quando falamos de
Vila de Gaia, estamos perante uma formação toponímica típica da Reconquista, perante uma perífrase em que a preposição de antecede o nome do possessor da villa. Considerando a origem do antropónimo, é provável que a datação do topónimo recue ao início do século VIII, na sequência das primeiras apropriações feitas pelos conquistadores muçulmanos. Com efeito, esquecemo-nos com demasiada frequência que as tropas muçulmanas, que invadiram a Península em 711, eram constituídas essencialmente por forças berberes, as quais, após a conquista e a distribuição de terras, foram empurradas pelas chefias para o Noroeste peninsular, enquanto árabes, egípcios e sírios ficavam com os territórios mais ricos e integrados nos percursos da economia mediterrânea. Gaya é, ainda hoje, um antropónimo masculino amazigue, que também podemos encontrar no distrito de Faro, sob a forma composta Benagaia (povoação da freguesia de Pêra, concelho de Silves), isto é, "filho de Gaia" (cf. Teres, 1990: 150-151).
"Gaia", na forma simples, derivada ou composta,
encontra-se em muitos outros topónimos, um pouco por todo o país, mas, na grande maioria dos casos, serão topónimos relativamente recentes e relacionados com os actuais apelidos Gaia, Gaião, Gaio e Gaioso.

Bibliografia:
DURAND, Robert (ed.) (1971) — Le Cartulaire Baio-Ferrado du Monastère de Grijó (XIe-XIIIe siècles).
Paris: Fundação Calouste Gulbenkian, Centro Cultural Português. LV, 330 p. (Fontes Documentais Portuguesas; 2).
[FERNANDES, A. de Almeida] — Vila Nova de Gaia. In Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira
. Lisboa-Rio de Janeiro: Editorial Enciclopédia. Vol. 35, p. 662-682. Obra citada pelas iniciais GEPB.
FORAES DE VILLA-NOVA, E GAYA impressos por ordem da Ill.ma Camara Constitucional
. Porto: Typ. De Viuva Alvarez Ribeiro, 1823. [3], 34, [4] p.
PIMENTA, Alfredo, ed. (1982) — Fontes Medievais da História de Portugal
. Volume I, Anais e Crónicas. 2ª ed. Lisboa: Livraria Sá da Costa. XXXII, 335 p. (Colecção Clássicos Sá da Costa).
TERÉS, Elias (1990) — Antroponimia hispanoárabe (Reflejada por las fuentes latino-romances). Ed. Jorge Aguadé, Carmen Barceló y Federico Corriente. Anaquel de estudios árabes. Madrid: Universidad Complutense.
Nº 1 (1990), p. 129-186.

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