sexta-feira, 22 de dezembro de 2006

Taxinomia toponímica

As possibilidades recentemente abertas ao trabalho científico, pelo desenvolvimento da informática e pela crescente tendência para a interdisciplinaridade, implicam novas respostas, capazes de potenciar as recém-chegadas ferramentas. Foram estas, por excelência, as razões que me forçaram a reflectir sobre os problemas da classificação e tipologia dos topónimos, a partir dos numerosos estudos já publicados, desde os trabalhos pioneiros de José Leite de Vasconcelos e Alberto Sampaio, passando, entre outros, por Joaquim da Silveira, José Joaquim Nunes, Joseph Piel, Pedro Cunha Serra, Dieter Kremer ou Almeida Fernandes, e terminando no vastíssimo manancial de obras versando a onomástica ou a toponomástica em particular, publicadas um pouco por toda a Europa, cujo balanço, no que respeita à àrea românica, tem vindo a ser feito, desde a década de oitenta, no Lexikon der Romanistischen Linguistik (LRL).
O problema da classificação, com destaque para os conteúdos toponímicos, foi há muito considerado prioritário, embora muito pouco tenha sido feito, tanto em Portugal como além-fronteiras, onde os diferentes autores vão introduzindo neologismos, sem que, como afirma Dieter Kremer (Portugiesisch: Toponomastik, in LRL, vol. 6/2, 1994, p. 534), haja um consenso universal. Apesar dos desencontros, que prejudicam o desenvolvimento destes estudos, encontramos um ponto de união entre os diferentes contributos avulsos, já que todos partem de construções baseadas no grego clássico.
A Academia das Ciências de Lisboa é a instituição a que, por lei, cabe a resolução dos problemas relacionados com a língua portuguesa, mas, por razões que desconhecemos, que poderão relacionar-se com aspectos orçamentais, muito pouco tem sido feito nas últimas décadas. Destaco o seu Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, publicado em 1940, com cerca de cento e quarenta mil entradas de vocabulário comum e dezassete mil de nomes próprios, onde se avançou alguma coisa na classificação do vocabulário onomástico (p. XXI-XXIV).
No que respeita à toponomástica, o maior esforço de classificação continua a dever-se a Almeida Fernandes, autor da excelente entrada, s.v. "Toponímia", da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira (vol. 32: 70-84), trabalho forçosamente datado, que merecia ter sido revisto na recente actualização desta obra.
Com base em todos estes contributos, e respeitando as designações já consagradas pela Academia na obra acima referida, tentei, a partir do léxico do grego clássico, estabelecer um sistema taxinómico, capaz de responder à função e conteúdo dos diferentes topónimos, com vista a facilitar o seu posterior tratamento. Esta proposta pretende ser uma primeira aproximação a uma imprescindível sistematização toponomástica, esperando os contributos indispensáveis ao seu enriquecimento, com vista à posterior aceitação pelo órgão legitimador.
Se este processo for levado a bom termo, será possível, no futuro, e perante estudos da mesma natureza, referidos a diferentes áreas e/ou regiões, avançar para o respectivo cruzamento, partindo de um sistema comum, capaz de fornecer as sínteses indispensáveis, geradoras de novos trabalhos e estudos, mas também de problemáticas sustentadas que, no seu conjunto, contribuiriam para um melhor conhecimento do nosso passado, fornecendo novos materiais a linguistas, historiadores, arqueólogos, sociólogos, antropólogos e geógrafos, mas também a biólogos e geólogos.
Dada a sua consagração, toponímia, topónimo e o adjectivo toponímico deveriam continuar a ser usados, quando nos referimos aos nomes dos lugares em geral, mas, em termos classificativos de precisão, seria importante acrescentar àqueles os termos microtoponímia, microtopónimo e microtoponímico.
Nesta segunda aplicação, o primeiro grupo ligar-se-ia à chamada "toponímia maior", que incluiria os nomes das localidades e regiões, enquanto o segundo, ligado à "toponímia menor", se aplicaria aos nomes de sítios, fossem eles campos, herdades, arruamentos, fontes, vales, montes, ribeiros, etc..
Por detrás desta classificação estaria o homem, o agente nomenclador, que entraria na "toponímia maior" através da sua função gregária, expressa nos povoados, sejam eles aldeias, vilas ou cidades, a partir dos quais a natureza é transformada e nomeada.
A extrema riqueza e variedade de conteúdos, da toponímia em geral, exige que avancemos para a sua sistematização, fixando uma terminologia suficientemente expedita e atenta ao pormenor, através da qual possamos organizar a informação para posterior tratamento.
Assim, respeitando, como disse, a terminologia já fixada pela Academia, que só interfere, e raramente, nas subdivisões da minha sistematização, organizei uma taxinomia toponímica que, como regra geral, antepõe e aglutina ao substantivo toponímia um elemento grego, com a dimensão suficiente para uma leitura do respectivo significado.
Esta taxinomia, que a seguir se enuncia, desenvolve-se em 17 classes (grau 1), algumas das quais com subclasses (grau 2) que, em poucos casos, ainda se subdividem (grau 3), somando, no seu conjunto, 36 categorias:

1. Agrotopónimo < agros, "campo": actividades agro-pecuárias (Agra, Arrota, Campo, Campelo, Ribafeita, Vinhais, etc.);
2. Antropotopónimo < anthropos, "homem": toponímia a partir dos nomes próprios, apelidos e alcunhas das pessoas, abarcando a antroponímia e a prosonímia (Academia, 1940: XXII);
3. Arqueotopónimo < arkhaios, "antigo": qualquer topónimo que aponte para vestígios do passado, mais ou menos recente, assumindo o carácter de fonte arqueológica, no sentido mais amplo e actual desta ciência. Por esta razão, a classificação nesta divisão não exclui a inclusão numa das outras;
4. Axiotopónimo < axía, "mérito, dignidade, honra": a partir de "palavras que constituam formas corteses de tratamento ou expressões de reverência" (Academia, 1940: XXIV) ou cargos elevados na estrutura das instituições civis e religiosas (El-Rei, Rainha, Alcaide, etc.);
5. Biotopónimo < bios, "vida": vida animal e vegetal, podendo especificar-se nas subdivisões a seguir enunciadas:
5.1. Fitotopónimo < phytón, "planta": plantas (Carregal, Taboeira, etc.);
5.1.1. Dendrotopónimo < déndron, "árvore": árvores (Carvalho, Castanheiro, Freixo, Loureiro, etc.);
5.2. Zootopónimo < zoon, "animal": animais (Mataduços, etc.);
5.2.1. Entomotopónimo < éntomon, "insecto": insectos (Ralos, Raralha, etc.);
5.2.2. Ictiotopónimo < ikhthýs, "peixe": peixes (Enguia, Parrachil, etc.);
5.2.3. Ornitopónimo < órnis, "ave": aves (Cantadeira, Codornizes, Cotovia, Falcoeiras, Gaivota, etc.);
6. Cromotopónimo < khroma, "cor": cores (Alva, Viriato, etc.);
7. Emporotopónimo < empória, "comércio": actividades comerciais, mercados (Feira, Venda, etc.);
8. Etnotopónimo < éthnos, "raça, nação, povo": "nomes de povos, de tribos, de castas [...], de comunidades políticas ou religiosas que possam ser entendidas num sentido étnico" (Academia, 1940: XXIII) (Galegos, Coimbrões, etc.);
9. Geotopónimo < , "terra": acidentes geográficos e respectivos nomes (Cabedelo, Ilha, Serra, Monte, Vale, Vouga, Tejo, Marão, etc.);
9.1. Hidrotopónimo < hýdor, "água": nascentes, fontes, linhas e toalhas de água, podendo especificar-se nas subdivisões já consagradas (Fonte Nova, Fonte da Pega, Lagoa, Arrujo, Ribeiro, etc.):
9.1.1. Limnotopónimo < límne, "pântano": estudo onomástico dos lagos e de outros acidentes lacustres (Ria de Aveiro, Pateira de Fermentelos, etc.);
9.1.2. Potamotopónimo < potamós, "rio": estudo onomástico dos rios (Vouga, Águeda, Cértima, etc.);
9.2. Litotopónimo < líthos, "pedra": rochedos, aspectos geológicos (Barreiro, Areal, Pedra da Moura);
9.3. Orotopónimo < óros, "monte, montanha": relevo e formas de terreno (Outeiro, Vale, etc.);
10. Heortopónimo < heorté, "festa, festividades populares" (Academia, 1940: XXIII);
11. Hierotopónimo < hierós, "sagrado": sagrado, religião, templos, capelas (ex. Ermida, Mosteiro, Igreja, Grijó, etc.) (Academia, 1940: XXIII);
11.1. Hagiotopónimo < hágios, "santo": santos (Nossa Senhora de Fátima, Santa Joana, Santo Amaro, São Tiago, São Roque);
11.2. Mitotopónimo < mýthos, "mito, fábula, nomes relativos à mitologia clássica ou a outra qualquer" (Academia, 1940: XXIII) (Lares, etc.);
11.3. Teotopónimo < theós, "Deus": Deus, religião (Senhor dos Aflitos, Senhor das Barrocas, etc.);
12. Hodotopónimo < hódos, "caminho": caminhos, ruas, praças, pontes, barcas de passagem, vaus, transportes, estações de mudas (Adro, Atalho, Azinhaga, Barca, Calçada, Caminho, Carreira, Carril, etc.);
13. Lexotopónimo < lexis, "maneira de falar, elocução", "estilo", "palavra", "expressão": sequência sintáctica fixa relativa a um topónimo; toponímia predicativa e atributiva, sob a forma aglutinada ou analítica (Vilaverde, Lamamá, Quinta da Velha);
14. Necrotopónimo < nekrón, "cadáver": morte, sepulturas (Arco, Arcozelo, Moimenta, Pias, Anta, Mamoa, etc.);
15. Oicotopónimo < oiquía e oícos, "casa"; katoikídho, "povoar, tornar habitado, colonizar": formas de assentamento humano, núcleos de povoamento e/ou respectivo estatuto jurídico; marcos divisórios de propriedades; edificações e fortificações; abrigos naturais (ex.: Póvoa, Aldeia, Jugueiros, Vilafranca, Vilanova, Montaria, Casal, Paço, Sá, Torre, Vilar, Vila, Vilela, Vilarinho, Quintã, Cividade, Citânia, Prova, etc.; Espiunca, Pala, etc.);
15.1. Aminotopónimo < amina, "defesa", "acção de se defender": fortificações, lugares de vigia (ex.: Castro, Castelo, Torre, Atalaia, etc.);
15.2. Oriotopónimo < órion "limite, fronteira, marco": marcos divisórios de propriedades e lugares (ex.: Marco, Perafita, etc.);
16. Tecnotopónimo < tékhne, "arte manual, habilidade": ofício, habilidade, arte, artesanato. ciência aplicada, indústrias; trabalho, produtos, utensílios (Fráguas, Fábrica, Ferraria, Forno, Lagares, Moinho, Azenha, etc.; Cabaços, Mós, Modivas, Mofreita, etc.);
17. Uranotopónimo < ouranós, "céu"; < ora, "estado atmosférico, divisão do tempo": corpos celestes, estado atmosférico, firmamento, exposição ao sol ou aos ventos (Solposto, Soleira, etc.);
17.1. Anemotopónimo < anemos, "vento": ventos (ex.: Aguião, Vale do Suão, Coimbrão, etc.);
17.2. Astrotopónimo < ástron, "astro": "nomes de estrelas, planetas, constelações, etc." (Academia, 1940: XXIII) (Solposto, Soleira, etc.);
17.3. Cronotopónimo < khrónos, "tempo": "nomes próprios referentes ao calendário de qualquer povo, os nomes de eras históricas e ainda vários nomes designativos de épocas" (Academia, 1940: XXIII), nomes relacionados com estações do ano, etc. (Branha, etc.).

Sem comentários: