segunda-feira, 15 de janeiro de 2007

A Ver-o-Mar: com a verdade me enganas!

E é mesmo verdade. De "A Ver-o-Mar", vila (desde 2003) e freguesia do concelho da Póvoa de Varzim, vê-se o mar. E como não havia de ver-se, se ele está ali tão perto, tão à mão de semear? Não o verá o cego, mas, pensando melhor, até esse o verá, mesmo às escuras, no rumorejar das ondas ou no odor das maresias.
O problema não está no mar, que já por lá demorava quando as gentes se instalaram naquela nesga, à sua beira. O problema é que por lá, e alhures, poucos se entendem quando passam o topónimo à escrita. Se não vejamos!
Nas páginas web do INE (Instituto Nacional de Estatística), da ANAFRE (Associação Nacional de Freguesias) e da ANMP (Associação Nacional de Municípios Portugueses) encontramos a grafia "A Ver-o-Mar"; se formos à página da Câmara Municipal da Póvoa de Varzim deparamos com "Aver-o-Mar" e, no lintel do brasão da freguesia, arrumado no mesmo sítio, lobrigamos a legenda "Vila de A-Ver-o-Mar". Mas, se a pesquisa aproar no Reportório Toponímico de Portugal, teremos direito a outra versão, "Aver o Mar" (Portugal, 1967: v. 1, p. 71), sem hifenização. É caso para vozear: em que ficamos?! E, se o grito for ouvido por algum dos idosos da vila, a resposta virá de imediato: ficamos em "Abremar", que é esse o nome do lugar. A soar ao mesmo, mas de hífen a tiracolo, sob a forma "Abre-Mar", aparece num dicionário corográfico do início do século passado (Pereira & Rodrigues, 1904: vol. 1, p. 21).
Perante a resposta popular, o enigma, criado pela teimosia atarantada dos "eruditos", abre-se à compreensão do estudioso que, no caso em apreço, poderá chegar a conclusões credíveis, pois conta com alguns documentos medievais que atestam o percurso do nome do povoado.
O nosso topónimo aparece num documento de 1099 — a menção mais antiga que conhecemos —, ostentando a qualidade de villa e a grafia "Abonemar" (Costa, 1959: 99). Estamos, por isso, em presença de um topónimo formado a partir do nome do possessor da villa, um antropónimo de origem hispano-árabe, o que não obsta a que fosse um cristão como qualquer outro, porventura descendente de uma família moçárabe do Sul. Para legitimar esta afirmação, bastará percorrer os diplomas do Livro Preto da Sé de Coimbra, onde encontraremos dezenas de nomes de origem árabe, como será o caso de um "Avomar" e de um "Martinus Umariz", respectivamente em documentos datados de 977 (LP-2, p. 173) e 1188 (LP-1, p. 102).
Abonemar será metátese do nome hispano-árabe Abenomar, do árabe Ibn "filho de" + 'Umar, de interpretação duvidosa, mas a que alguns autores atribuem o significado de "o supremo; seguidor do profeta; riqueza". Aben, a primeira parte do nome, uma das variantes hispano-árabes de Ibn, corresponde à parte da estrutura onomástica chamada nasab "genealogia ou descendência", que indica a ideia de filiação e é seguida do nome do pai, podendo repetir-se com o nome do avô, bisavô, etc. Omar será o mesmo que 'Umar, pois o hispano-árabe desconhece a oposição /u/:/o/ (Terés, 1990: 147-148, s.v. 31 'ibn; 1992: 12-13, s.v. 310 'umar). Neste caso concreto, aventamos a hipótese da resolução do hiato (*Abeomar), resultante da queda do -n- intervocálico de Abenomar, ter sido feita através de assimilação com rotacismo (*Abreomar), claramente responsável pela economia de movimentos articulatórios, economia essa que o povo levou mais longe com a síncope do -o- (Abremar).

Abambres, topónimo que identifica uma freguesia do concelho de Mirandela e um lugar da freguesia de Mateus do concelho de Vila Real, tem igualmente origem num antropónimo hispano-árabe, com ocorrências que, nalguns casos, poderão gerar confusão com o referido Abonemar.
Falamos do antropónimo hispano-árabe Abuambre ou Aboambre, do árabe Abu "pai de" + 'Amr "vida", que também ocorre sob as formas Abohamor, Aboamar e que marca presença na toponímia da Península Ibérica (Terés, 1990: 134-136, s.v. 1 ab; 1992: 11, s.v. 306 'amr).
Abu, o primeiro elemento deste antropónimo, corresponde à parte da estrutura onomástica chamada kunía "sobrenome", formada pela partícula de filiação (abu) a que se seguia o nome próprio do primeiro filho varão (não confundir com o nisba "parentesco, aliança, filiação", que era o elemento que indicava a tribo). Como diz Elias Terés, trata-se de "um composto filionímico que podia preceder ou seguir o nome próprio no sistema onomástico árabe antigo. Mas não podemos esquecer que muitas kunías passaram a funcionar como nomes próprios, apodos e inclusive como nomes comuns" (Terés, 1990: 134, n. 1).
Abambres, da freguesia de Mateus, aparece-nos documentado em 1101 como "Avamores" e a qualidade de villa: "in terra de Panonias discurrente rivulo Corrago in villa que vocitant Avamores" (Costa, 1959: vol. 2, p. 262).

Bibliografia:
COSTA, Avelino de Jesus da (1959) — O bispo D. Pedro e a organização da diocese de Braga. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. 2 vol.
LIVRO PRETO da Sé de Coimbra. (1977-1979) Ed. de COSTA, Avelino de Jesus da; VENTURA, Leontina; VELOSO, M. Teresa. Coimbra: Arquivo da Universidade de Coimbra. 3 vol. Citados como LP-1, LP-2 e LP-3.
PEREIRA, Esteves; RODRIGUES, Guilherme (1904-1915) — Portugal: Diccionario historico, chorographico, heraldico, biographico, bibliographico, numismatico e artistico [...]. Lisboa: João Romano Torres. 7 vol.
PORTUGAL. Ministério do Exército. Serviço Cartográfico do Exército (1967) — Reportório Toponímico de Portugal: 03 — Continente (Carta 1/25.000). 3 vol.
TERÉS, Elias (1990-1992) — Antroponimia hispanoárabe (Reflejada por las fuentes latino-romances). Ed. Jorge Aguadé, Carmen Barceló y Federico Corriente. Anaquel de estudios árabes. Madrid: Universidad Complutense. Nº 1 (1990), p. 129-186; nº 2 (1991), p. 13-34; nº 3 (1992), p. 11-35. ISSN 1130-3964

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