segunda-feira, 18 de dezembro de 2006

RELVA e seus derivados: uma fala lusitana?

RELVA, RELVACHO, RELVADA, RELVADAS, RELVADEIRA, RELVADO, RELVADOS, RELVAGEM, RELVAIS, RELVANCHA, RELVÃO, RELVAS, RELVASÃO, RELVEIRA, RELVEIRINHO, RELVEIRO, RELVINHA, RELVINHAS, RELVINHO, RELVIO, RELVIOS; A RELVA (Galiza)

A carta militar de Portugal continental dá-nos mais de 250 ocorrências para o topónimo "Relva(s)" e seus derivados, incluindo neste total os topónimos simples e as expressões toponímicas. A este número teremos de acrescentar as 18 ocorrências nos arquipélagos da Madeira e dos Açores (9 em cada) e as de Cabo Verde e Galiza (encontrámos uma ocorrência em cada, a nível da toponímia maior). Para além desta toponímia há muitos outros microtopónimos desta família que, por razões óbvias, não constam da carta 1/25.000, mas que, nalguns casos, podem ser encontrados nas cartas 1/10.000 e, em maior profusão, nos livros de registo das matrizes prediais, como é o caso de Relva(s), Relvada(s), Relvados e Relvão no concelho de Aveiro.
"Relva" é ainda hoje um apelativo muito vulgar em Portugal, designando um "conjunto de ervas rasteiras que juncam um terreno", um "lugar coberto por essas ervas", um "relvado" (Houaiss), ou, nos dizeres de outro dicionarista, a "aglomeração de ervas rasteiras e que pertencem quase todas às gramíneas ou poáceas, as quais juncam os prados e os caminhos de pouco trânsito" (J.P.Machado).
Para além da forma simples, no singular ou com a marca do plural, que abrange a grande maioria das ocorrências, constata-se a derivação sufixal com os afixos -acho, -ada(s), -ada + -eira, -ado(s), -agem, -al (no plural -ais), -ão, -z- + -ão, -eira, -eiro, -eiro + -inho, -inho(a), -io(s) e um caso de aglutinação em "Relvancha" (relva ancha "relvado de grande extensão"). Sistematizando um pouco mais, detectamos sufixos diminutivos (-inha, -inho), diminutivos com valor pejorativo (-acho), de noção colectiva (-ada, -agem, -al, -eira, -eiro, -io), de noção colectiva reforçada por dupla sufixação (-ada + -eira), aumentativo com função de quantidade (-ão, num dos casos com o infixo -z-, mal grafado -s-) e de noção colectiva em simultâneo com sentido diminutivo (-eiro + -inho).
O derivado mais de acordo com a norma portuguesa, significando a referida ideia de conjunto, de noção colectiva, será o que utiliza o sufixo -ada. Outro tanto poderíamos afirmar do sufixo -al, se a presença da mesma líquida no radical e no sufixo o não afastasse; não é por acaso que a única ocorrência surge no plural, precisamente para evitar a cacofonia.
O sufixo -ado coloca alguns problemas, já que, com o sentido de "provido ou cheio de", forma adjectivos de substantivos e nunca substantivos de substantivos. Por isso, "Relvados" será a substantivação do particípio passado de "relvar", intransitivo, ou a substantivação do qualificativo de uma expressão toponímica, por supressão do elemento genérico. Quanto a "Relvadeira", sítio da freguesia e concelho de Miranda do Corvo, poderá ter a mesma origem de "Relva da Eira", sítio da freguesia e concelho da Pampilhosa da Serra, embora este último topónimo possa corresponder a "Relva de Ereira", isto é, terreno de heras, se considerarmos a toponímia envolvente (fica encostada a "Selada da Ereira") e a ausência de acidentes geográficos que justifiquem a presença da fala "eira".
Regressando a "Relva", estamos perante uma voz muita antiga que já aparece em documentos do século XIII e, como vimos, em topónimos das ilhas atlânticas, mostrando a importância da criação de gado no surgimento de diferentes tipos de povoados. A quase totalidade destes topónimos manifesta-se entre Douro e Tejo, seguindo-se em importância os distritos de Faro (com prevalência na serra algarvia) e de Vila Real, continuando nos distritos de Portalegre, Évora, Beja, Lisboa e Setúbal, abarcando, grosso modo, a área do antigo assentamento de Lusitanos e Cónios e, a norte do Douro, algumas franjas do Nordeste que apelidamos de vetãs, face à presença de uma considerável iconografia berroa.
Salvo o referido topónimo galego, e uma outra excepção a que nos referiremos de seguida, a voz "relva" não aparece em mais nenhuma zona da Europa, nomeadamente nas áreas românicas, germânicas e célticas, já que não encontrámos quaisquer vestígios do apelativo ou do topónimo, fosse em Asturiano, Leonês, Italiano, Francês ou Romeno, nos falares Pirenaicos, Aquitanos e do Languedoc, nas línguas célticas insulares e da Bretanha, ou nos antigos falares da Península.
Quanto à excepção atrás referida, registada no âmbito do castelhano, a voz "relva" continua ausente da toponímia, mas logramos encontrá-la no Diccionario da Academia; percebe-se a ausência toponímica, se considerarmos o significado atribuído a este vocábulo, "acción y efecto de relvar", enquanto relvar aparece como sinónimo de "levantar el barbecho" e ligado etimologicamente ao latim relevare, origem que o mesmo dicionário também regista para o verbo espanhol relevar. Embora o mesmo étimo possa originar palavras diferentes, o que ocorre com frequência, sempre que o vernáculo adopta formas eruditas e populares, não nos parece correcta a explicação etimológica apresentada para o relvar castelhano. O que pomos em causa é que um verbo de acção, semanticamente muito abrangente, possa passar a significar uma actividade tão específica que, para ser entendida, obrigaria, necessariamente, a uma informação expressa por um sintagma complementar, pelo que, no caso em apreço, por certo a lógica da língua levaria a um verbo barbechar que, aliás, existe em espanhol, com o mesmo significado de relvar.
As características menos conservadoras do castelhano, face ao português, bem como a complexidade e o elevado número de substratos em que assentou, terão relegado a voz relva para segundo plano, substituída por herbaje, "conjunto de hierbas que se crían en los prados y dehesas", acabando por evoluir semanticamente e perdendo o sentido primitivo que, no entanto, lá continua, embora com o "rabo escondido". Com efeito, a expressão "levantar el barbecho" mais não é que proceder à cava de uma terra que irá ficar em pousio, na qual, necessariamente, crescerão as ervas aproveitadas para a alimentação do gado, possibilitando, no afolhamento seguinte, uma melhor produção de "pão". Entretanto, no Português, temos o "barbeito" para contrapor ao castelhano barbecho, mas, para o castelhano barbechar, teremos que ir ao superstrato, que nos fornecerá o verbo "alqueivar", do árabe al-qewê "terra deserta".
Esta sucessão de reflexões e hipóteses permite-nos acreditar que a voz "relva", que encerra em si todos os fonemas presentes no latim herba, teria constituído, no passado, um apelativo presente na língua indo-europeia falada por Lusitanos, Cónios e Vetões, continuando viva na área portuguesa, mas desaparecendo da área principal do habitat dos Vetões (Salamanca e Cáceres), onde a força do castelhano impôs o seu eclipse.
Por último importa deixar uma breve nota sobre as etimologias que encontrámos dicionarizadas para o apelativo português "relva", cujos fundamentos não nos parecem aceitáveis. Pretende-se que "relva" seja um derivado regressivo de "relvar", com este verbo a formar-se do latim re-herbare, "criar erva outra vez", mas o latim *herbare, se existiu e correu no Ocidente peninsular, é logo esquecido no mesmo dicionário, quando se faz derivar o verbo "ervar" de "erva + -ar". Com efeito, o verbo latino que responde ao aparecimento da "erva" não é *herbare, mas sim herbescere, verbo incoativo a concordar com a tecnologia da época, quando a "erva" seria uma dádiva da natureza, quanto muito ajudada por uma cava, mas não o resultado de uma acção humana de semeadura. Isto mesmo pode ser confirmado pelo Vocabulário de Rafael Bluteau (1720, vol. 7), que regista "relva" como "a erva do prado à flor da terra" e o verbo "relvar" com o significado de "ter relva" e usado apenas no adágio "Quem em Maio relva, não tem pão, nem erva".

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