terça-feira, 27 de março de 2007

A magia das luzes: Alumieira, Lumiar (3)

Temos, por fim, os topónimos Alumieira, nome de um pequeno lugar da freguesia de Esgueira (concelho de Aveiro) e de uma povoação da freguesia do Loureiro (concelho de Oliveira de Azeméis). Nestes dois povoados, e também no lugar da Taipa da freguesia de Requeixo (concelho de Aveiro), existem capelas da invocação de Nossa Senhora da Alumieira, a advogada dos partos felizes, hagiónimo equivalente a Nossa Senhora do Bom Despacho, do Bom Parto, do Bom Sucesso (ou Bonsucesso), da Boa Hora ou, simplesmente, do Parto. Estamos, manifestamente, perante antigos cultos da fertilidade, associados às festividades do equinócio da Primavera, aos rituais de passagem e de renovo das antigas concepções do tempo cíclico e do eterno retorno, que o tempo linear judaico-cristão não conseguiu apagar.
Nestes três casos, as festividades profanas e religiosas têm lugar na segunda-feira de Páscoa, englobando procissão e uma grande diversidade de festejos. No lugar esgueirense, o povo espalha-se pela área que envolve a capela, cada família em volta da toalha estendida no chão, na qual se dispõem o folar e os petiscos que, noutros tempos, era constituído por carapau salpicado com favas e batata nova, duas das novidades agrícolas desta época do ano.
No lugar da Taipa, há sessenta anos atrás (Melo, 1947), ainda as ruas se juncavam de ervas de cheiro, havia foguetório e filarmónicas, entremez e comezaina com fartura, com destaque para os folares e as caçoilas de carneiro assado. Hoje talvez só falte o entremez.
No largo principal de Alumieira, na vila e freguesia do Loureiro, durante o chamado "arraial da Páscoa", destaca-se "o saltar do rego", uma corrida de cavalos e burros que mantém o antigo nome, adquirido no tempo em que a praça era atravessada por um rego de água, aproveitado para o regadio dos campos, rego que os participantes saltavam, num claro indício de ancestrais ritos de passagem. Acontece que, nalgumas das antigas festas celtas da Irlanda, também havia corridas de cavalos, como as que se realizavam em Emain Macha, no Ulster, ou em Tailtiu, no reino central de Meath (Hubert, 1988: 466-467).
Encontrámos mais duas capelas dedicadas a Nossa Senhora da Alumieira, no distrito de Aveiro, uma na freguesia de Aguada de Baixo (concelho de Águeda) e outra na freguesia e concelho de Oliveira do Bairro. Em ambos os casos as festividades acontecem no dia 1 de Agosto, precisamente o dia em que os celtas comemoravam o Lughnasadh, o festival das colheitas e das primícias, em honra do deus Lug, o "Luminoso".
Todos os topónimos e hagiotopónimos da série Lumiar e Alumieira têm algo a ver com "luz", com o Sol, mas pressupõem igualmente a ideia de "limiar", de "porta" e de "passagem", relacionada com o tempo cíclico do homem arcaico e das civilizações tradicionais, um tempo complexo que só reconhece o profano no sagrado, com este a realizar-se nas mais diversas hierofanias. Daí os símbolos e ritos celestes, o culto do Sol e da Lua, o culto das águas e das pedras, o culto da deusa-mãe, com todos os símbolos e rituais de renovação e fertilidade, procurando, através do mito, inscrever no presente, no tempo profano, o tempo sagrado do in illo tempore primordial. Se procurarmos na já referida freguesia do Lumiar, do concelho de Lisboa, para além do que já detectámos antes, de que demos notícia na postagem anterior, ainda podemos encontrar a igreja e o culto de Nossa Senhora da Porta do Céu, a porta que se abre para o outro mundo.
Os topónimos e hagiotopónimos estudados nestas últimas postagens enraízam-se nas religiões pré-romanas, profundamente caldeadas em sincretismos de todos os tempos, desde a deusa-mãe do Neolítico e do Megalitismo, ao contributo de vagas sucessivas de povos que, atravessando a Europa, chegaram a esta faixa ocidental da Hispânia, transformada em finisterra pelas limitações técnicas que, durante milénios, transformaram o Atlântico num obstáculo à conquista de novos horizontes a Poente.
E porque não é fácil apagar crenças religiosas que atravessam centenas ou milhares de gerações, não podemos estranhar que, já no século VI, o bispo Martinho de Dume (arredores de Braga) se insurja, na obra De correctione rusticorum ("Acerca da correcção dos rústicos"), contra os que continuam a adorar o Sol, a Lua, as estrelas, o fogo e as águas, contra a adoração das divindades que simbolizam o mar, os rios, as fontes e os bosques, contra as comemorações da passagem do ano, contra os que levantam montões de pedras nas encruzilhadas ou os que acendem tochas ou fogueiras junto dos penedos, árvores, fontes e entroncamentos. De outros rituais pagãos nos dá conta a colecção de cânones organizada pelo mesmo bispo, depois do segundo concílio de Braga de 572 (Vasconcelos, 1989: vol. 3, p. 566-573). Passados mais de catorze séculos, continuamos a ver a Igreja combater e condenar muitas das manifestações profanas com que o povo enfeita grande parte das festividades religiosas.

Ver bibliografia na postagem do dia 4 de Março

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