terça-feira, 13 de fevereiro de 2007

Antroponímia e toponímia (4): A Reconquista

A natureza das dissenções que grassavam entre a diversidade étnica dos invasores, e mesmo entre os representantes das diferentes tribos árabes, vieram facilitar todo o processo da Reconquista, cedo iniciada a partir das serranias asturianas, sob o comando de Pelágio, o chefe ásture responsável pela primeira derrota muçulmana, em 718, nos acidentados terrenos de Covadonga.
O reflexo destas divergências patenteia-se no elevado número de governadores que o al-Andaluz conheceu de 710 a 755, enquanto emirato dependente de Damasco, muitos dos quais acabaram os seus dias assassinados. Se excluirmos Tárique e Muça, os conquistadores, contamos vinte governadores, dois dos quais exerceram o cargo em dois mandatos distintos (Coelho, 1989: v. 2, 55-56). Durante este período acontecem as revoltas de berberes no Norte de África (740) e no Centro e Norte da Península (741), aqui devido a uma fome que levará muitos deles a regressar às terras de origem.
Estes acontecimentos serão aproveitados pelo recém formado reino das Astúrias, através de várias razias praticadas por Afonso I (739-757), que consegue expulsar os muçulmanos da Galiza (750-751) e de Astorga (753-754), avançando ainda mais para Sul, até Viseu. Mas a ausência de recursos político-militares não permitiu a Afonso I ocupar a zona assolada, preferindo recuar para território mais seguro, levando consigo os quadros administrativos e, possivelmente, alguns elementos da população, o que deu lugar à denominada tese do ermamento* das margens do Douro, defendida por Alexandre Herculano com base numa interpretação literal do Chronicon Sebastiani. Estudos do início do século passado, como os publicados por Alberto Sampaio em 1923 (Sampaio: 1979), e outros mais recentes, como os de Pierre David (1947), Avelino Jesus da Costa (1959) e Almeida Fernandes (1968), demonstram que não podemos aceitar uma leitura precipitada, ignorando a mentalidade e os objectivos políticos que subjazem a muitos diplomas.
Dois importantes documentos dos séculos VI e VII, já utilizados, entre outros, pelos referidos Pierre David e Avelino Jesus da Costa, mas cujo estudo pioneiro se deve a Almeida Fernandes (1968), permitem-nos rasgar algum caminho no conhecimento histórico do Noroeste hispânico, já que o seu conteúdo, quando comparado com a documentação dos séculos IX-X, possibilita a rejeição da referida tese do ermamento total. Os documentos em questão correspondem à Divisio Teodemiri ou "Paroquial Suevo", redigido entre 572 e 582-585, e à Divisio Wambae ou "Provincial Visigótico", redigido em meados da segunda metade do século VII ou talvez ainda antes de 665, no reinado de Recesvinto (Fernandes, 1997: 43, 109, 115)
O mérito de Almeida Fernandes, que se circunscreveu ao método toponímico, reside sobretudo na identificação de muitas das antigas paróquias suevas, descobrindo a permanência desses topónimos, mesmo quando profundamente dissimulados sob sucessivas capas de deturpações e corruptelas, presentes nos documentos em questão ou acumuladas ao longo dos últimos séculos. Recentemente, também Jorge de Alarcão (2001) trabalhou na identificação destas paróquias, com meios mais credíveis, pois incluiu um variado conjunto de dados fornecidos pela arqueologia, confirmando algumas das conclusões de Almeida Fernandes, mas discordando de outras.

O al-Andaluz receberá sangue novo em 755, quando ali desembarca Abderramão ibne Moáuia, sobrevivente do massacre da dinastia omíada de Damasco. Abderramão I abre um novo ciclo do poder muçulmano na Península, iniciando o emirato independente de Córdova, que durará até 929, quando outro Abderramão, o III, o eleva à categoria de Califado, com as respectivas consequências religiosas, já que o califa é também o emir dos crentes, o mesmo é dizer, descendente legítimo do Profeta.
O Califado de Córdova estará de pé durante um século, até 1031, quando as quezílias, os conflitos e a guerra aberta entre os príncipes árabes, em concorrência com a degeneração dos últimos califas, encerrados nos seus palácios e transformados em marionetas de eunucos ou de ministros como Almançor, que governou como ditador durante mais de vinte anos, levaram à sua pulverização nos numerosos reinos de Taifas*.
O Norte cristão também vivia permanentes conflitos, como resultado directo da fragmentação do reino de Leão, sempre que a um rei sobreviviam vários filhos, contribuindo dessa forma para o reacordar de identidades político-culturais, muitas delas assentes em matrizes ancestrais, cujos desenvolvimentos eram tanto mais fortes, quanto maior era a distância que as separava da corte leonesa. Por tudo isto, a Reconquista avançava ou recuava em função do estado de organização e unidade de cada uma das partes.
Regressando às margens do Douro, pretensamente «ermadas» por Afonso I, e ao território onde mais tarde nascerá Portugal, importa destacar as acções promovidas no reinado de Afonso III (866-911), quando nasce o reino de Leão, por deslocação da respectiva capital, de Oviedo para aquela cidade, cujo nome assume a reminiscência do antigo assentamento militar da Legio VII Gemina.
Uma prolongada acalmia política no Norte cristão ofereceu o ensejo e as condições para um avanço da fronteira em direcção a Sul, ao longo da faixa atlântica, mais distante dos centros de decisão muçulmanos, envolvidos frequentemente na resolução de conflitos com as principais cidades mediterrâneas do al-Andaluz. Vímara Peres, ao presuriar Portucale em 868, irá reorganizar e enquadrar politicamente toda essa zona, estabelecendo a sede de governo e de repovoamento na antiga cividade da margem direita duriense.
Desta presúria, e do repovoamento de Portucale, resultará uma poderosa família condal, onde entroncaram os descendentes de Vímara Peres, do conde Gonçalo Betotes e dos irmãos Ero e Diogo Fernandes. Esta família governou o condado de 868 a 1071, data em que Nuno Mendes, o último conde, revoltado contra o rei Garcia, o filho de Fernando Magno que reinava na Galiza e em Portucale, é por este vencido e morto na batalha de Pedroso.
A revolta terá as suas raízes no reinado anterior, quando a política centralizadora do rei Fernando (1035-1065) retirou poder aos condes, confiando a administração a funcionários directamente dependentes da Coroa. A hipótese é tão mais verosímil, quanto sabemos que Nuno Mendes, embora apareça na corte de Fernando Magno, só ostenta o título de conde durante o governo de Garcia, período em que talvez tenha tentado recuperar todos os poderes anteriores.
Dez anos depois da presúria de Portucale, em 878, será a vez de Hermenegildo Guterres presuriar Coimbra, aí estabelecendo uma outra sede de repovoamento e levando a fronteira cristã até ao Mondego. Mas, neste caso, haverá um retrocesso, pois a reorganização árabe e o exército de Almançor, o ministro que reinou em vez do califa Hixeme I, mantido preso no seu próprio palácio, farão recuar uma vez mais a fronteira, embora aqui permaneçam os mosteiros e muitos familiares dos condes portucalenses, algumas vezes aliados aos árabes, numa clara e inequívoca afirmação de individualidade face a Leão.
Isto mesmo acontecerá cerca de 995, quando o conde Froila Gonçalves se aliou a Almançor, de quem terá recebido o governo de Montemor-o-Velho, onde se manteve até 1017, quando dali foi desalojado e vencido pelo conde Mendo Luz, que colocou no seu lugar o prócere Gonçalo Viegas “de Marnel”. Não será de excluir a hipótese do conde Froila ter também governado Coimbra, já que Almançor mandou reconstruir a cividade por essa mesma data.
Dois anos depois, com alguns cristãos no seu exército, Almançor atacará o coração da Galiza, profanando o túmulo do Apóstolo em Santiago de Compostela. Será nesta campanha que morrerá o conde portucalense Gonçalo Mendes, filho de Mumadona Dias. As investidas árabes ainda continuarão por algum tempo, como aconteceu em 1025 ou 1026, data provável da conquista de Lafões e talvez também de Montemor que, apenas em 1034, passará definitivamente para mãos cristãs, através de Gonçalo Trastemires
Depois da morte de Almançor (1002) e da desagregação do Califado (1031), o Norte cristão passará por uma fase de excepção, devido sobretudo ao papel desempenhado por Fernando I de Castela, o filho de Sancho III de Navarra que, ao herdar o condado da Meseta o transforma em reino (1035) para, dois anos depois, lhe juntar o de Leão, após vencer em combate o rei Bermudo III.
Até 1065 Fernando Magno, como a história o lembra, será rei de Leão e de Castela, o chefe cristão que mais fez avançar a fronteira para Sul, recebendo avultadas tributações de reinos de Taifas, abrigados sob a sua protecção. A obra será continuada por um dos seus filhos, o futuro Afonso VI, que, no entanto, terá de esperar sete anos após a morte do pai, para conseguir vencer os irmãos e reunir novamente os reinos de Leão, Castela e Galiza (Mattoso, 1981: passim).

Glossário*
ermamento: designa-se por "ermamento" o pretenso despovoamento de uma larga faixa fronteiriça (entre cristãos e muçulmanos), nas duas margens do Rio Douro, em consequência da acção de Afonso I, rei das Astúrias. A rarefacção demográfica considerada quase total por autores como Alexandre Herculano e Sanchez Albornoz e por muitos outros autores espanhóis que se seguiram a este, é negada por medievalistas portugueses e actualmente por partidários da nova historiografia espanhola, como Garcia de Cortázar, e sobretudo por M. Vigil e A. Barbero. Historiadores como Alberto Sampaio, Gama Barros, Pierre David, Menéndez-Pidal ou Avelino Jesus da Costa, e geógrafos como Orlando Ribeiro, apoiados em factos incontroversos e em aproximações pertinentes, mostraram em que sentido se deve tomar o ermamento: desordem social, ausência ou enfraquecimento dos quadros senhoriais, fuga das populações para lugares de refúgio, ruína e assolação dos centros urbanos, mas de modo nenhum despovoamento e supressão dos habitantes. Aquilo a que as fontes oficiais chamam repovoamento não é geralmente mais do que a colocação das autoridades régias, dos quadros político-administrativos e militares, num local já habitado e mesmo com uma organização local anterior.
neogodos: termo que serve para designar os habitantes do reino das Astúrias, fundado em 718 por Pelágio, na sequência da invasão e conquista da Península Ibérica pelos árabes; o termo pretende designar a mistura de Ástures com os Hispano-godos que se refugiaram no Norte (Astúrias) a seguir à invasão dos Árabes; o reino das Astúrias dará lugar ao reino de Leão, quando a Reconquista avança para Sul e a capital, que fora inicialmente em Cangas de Onis e depois em Oviedo, passa para a cidade de Leão (914), restaurada em 860 por Ordonho I.
presúria: instituto típico da Reconquista cristã da Península Ibérica, que correspondia à apropriação das terras e demais instalações, levada a cabo pelas forças neogodas*, nas regiões antes ocupadas e dominadas pelos muçulmanos; foi uma fonte importante da nova propriedade alodial e concelhia, como também de novos domínios senhoriais, fossem estes propriedade da nobreza, da Igreja ou dos reis (reguengos).
Reconquista: nome que geralmente se dá à recuperação do território hispânico depois da invasão muçulmana, desde a revolta de Pelágio (718) até à conquista de Granada (1492); embora inicialmente a Reconquista não tivesse revestido um carácter marcadamente religioso, a influência de ideias francesas, da cúria papal e das ordens militares acabará por introduzir na Península o espírito de cruzada.
taifas: Nome dado aos reinos muçulmanos independentes que se formaram na Península Ibérica após a queda e desmembramento do Califado de Córdova, em princípio do século XI, quando ricos proprietários árabes, chefes berberes e comandantes de contingentes de escravos retalharam o Al-Andaluz em seu próprio proveito, formando pequenas cortes locais. Taifa, do árabe al-ta’ifa, significa "partido" ou "bandeira".

Bibliografia:
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