sexta-feira, 11 de maio de 2007

Achas para um enredo. A propósito do feriado municipal de Aveiro (12 de Maio)

Infanta D. Joana
(Museu de Aveiro: óleo sobre madeira de anónimo português; 60 x 40; c. 1475)

Tem Aveiro dois beatos de peso, um e outro canonizados na rua, mas não na Igreja Católica. Um, “São” Gonçalinho, é obra popular, de construção beira-marense, com dança dos mancos dentro da capela, e bodo de cavacas, atiradas do alto da mesma, com força de abrir cabeças; outro, “Santa” Joana, beatificada pela Igreja e canonizada pelo clero local, num trabalho de sapa que recua ao século XVI e se prolonga nos nossos dias.
Esta nossa beata, padroeira da cidade, com direito a culto local, e só local, entrou em Aveiro anunciada por um cometa, tal qual o menino de Belém, secou o pomar do mosteiro com a simples passagem do seu féretro, e ainda veio do outro mundo para dois dedos de conversa com as freiras mais chegadas (Dias, 1987: fl. 34v-35v; 82v; 85v-87v).
O dia 12 de Maio, data da sua morte, foi arvorado em feriado municipal, substituindo o dia 16 de Maio, em que se lembravam os mártires da Liberdade, vítimas dos algozes a soldo do absolutismo miguelista, e a revolução liberal iniciada em Aveiro.
Para meditação dos crentes e não-crentes, nesta data de sossego municipal, este ano ao serviço do patronato, já que ocorre num fim de semana, deixamos dois documentos e algumas datas, o princípio de um enredo que merecia alguns fólios de ficção. Bem hajam!


Documento 1:


Capítulo CLXVIII da Crónica de D. Afonso V
«De como a Infanta Dona Joana filha de El-Rei foi metida no Mosteiro de Odivelas; e daí ao Mosteiro de Aveiro, e doutras coisas que El-Rei fez.

A Infanta Dona Joana filha de El-Rei estava a este tempo em Lisboa, com tão grande casa de donas e donzelas e oficiais como se fora rainha; e porque fazia sem necessidade grandes despesas, e assim por se evitarem alguns escândalos e prejuízos que em sua casa, por não ser casada, se podiam seguir, El-Rei por concelho que sobre isso teve, logo no mês de Outubro deste ano a apartou e em hábito secular, e com poucos servidores a pôs no Mosteiro de Odivelas em poder da Senhora Dona Filipa sua tia, em idade de 18 anos. Donde foi depois mudada para o Mosteiro de Jesus de Aveiro. Onde sem casar com nome de honesta e mui virtuosa, acabou depois sua vida em idade de trinta e seis anos. E neste ano faleceu o Papa Paulo, e sucedeu em Roma, na cadeira de S. Pedro, o Papa Sixto IV, a quem El-Rei mandou com sua obediência Lopo de Almeida» (Pina, 1904: vol. 3, p. 68).


Documento 2:

1493 Dezembro, 30.
Carta de D. João II proibindo que morassem em Aveiro pessoas poderosas, a fim de os seus habitantes, na maioria pescadores e mareantes, não serem prejudicados [Actualizou-se a grafia].
Museu Regional de Aveiro, Livro dos Registos da Câmara da Vila de Avewo, do séc. XVII, fl. 20, v.
D. João, por graça de deus rei de Portugal e dos Algarves daquém e dalém mar em África, senhor da Guiné. A quantos esta nossa carta virem fazemos saber que considerando nós como a maior parte da gente que vive em a nossa vila de Aveiro são mareantes e pescadores, e assim doutras pessoas que ganham suas vidas fora de suas casas, pelo qual sendo a vila do infante D. Pedro meu avô que Deus haja, havendo respeito a ela se poder melhor povoar, lhe deu privilégio que nenhumas pessoas poderosas, assim homens como mulheres, viessem viver e morar na dita vila. E se eles quisessem fazer o contrário mandava aos juízes dela que lho não consentissem. E ora os moradores da dita vila nos enviaram pedir que por quanto se eles receavam de as ditas pessoas virem viver a ela que lhes quiséssemos dar tal privilégio por que posto que eles a ela quisessem vir morar lho não consentissem. E nós, vendo o que nos assim requeriam ser razão havendo respeito querermos a dita vila ser melhor povoada do que ora é, e assim por outras razões que nos a isso moveram, e querendo-lhe fazer graça e mercê, temos por bem e queremos que daqui em diante nenhuma das ditas pessoas poderosas, assim homens como mulheres, não vivam nem morem na dita vila, não tolhendo porém os sobreditos quando forem de caminho pousarem na dita vila e estarem em ela até quatro dias, os quais acabados se partirão logo dela e não estejam aí mais.
E porém mandamos ao nosso corregedor em a dita comarca, e aos juízes da dita vila e a quaisquer outros nossos juízes e oficiais e pessoas a que o conhecimento disto pertencer esta nossa carta for mostrada que não consintam aos sobreditos estar mais em ela que o tempo aqui por nós limitado. E cumpram e façam em tudo cumprir e guardar esta nossa carta como se em ela contém sem lhe nisso ser posto outra dúvida nem embargo algum porque assim é nossa mercê.
Dada em a nossa vila de Santarém a trinta dias do mês de Dezembro. Vicente Pires a fez, ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil e quatrocentos [e] noventa [e] três (Madaíl, 1959: 242-243).


Factos e datas:


D. Afonso V
, rei (1432-1481).

D. Joana, princesa (1452-1490): filha de D. Afonso V; irmã de D. João II; entrou no mosteiro de Jesus, em Aveiro, em 4/8/1472; deixou-o em Setembro de 1479, por causa de uma epidemia, regressando em 12 de Agosto do ano seguinte; depois da morte de D. Afonso V (28/8/1481), recebeu em Aveiro o sobrinho Jorge, reconhecido como filho bastardo do irmão D. João II e de D. Ana de Mendonça, dama de D. Joana, a segunda mulher de seu pai, o rei Afonso V; senhora de Aveiro, por carta de seu irmão D. João II, datada de 19 de Agosto de 1485.

Rui de Pina
, autor da Crónica de D. Afonso V (1440-1522).

D. João II
, rei (1455-1495): filho de D. Afonso V; irmão da infanta Joana.

D. Jorge de Lencastre
(1481-1550): filho de D. João II e de D. Ana de Mendonça, dama de D. Joana, a segunda mulher de D. Afonso V; duque de Coimbra; marquês de Torres Novas; senhor de Aveiro; senhor de Montemor; mestre da Ordem de Avis; mestre da Ordem de Santiago; foi criado em Aveiro, no mosteiro de Jesus, por sua tia D. Joana, passando para a Corte depois da morte desta.


Bibliografia:
DIAS, Nicolau (1987) — Vida da Sereníssima princesa Dona Joana filha d'El-Rei Dom Afonso o Quinto de Portugal. Aveiro: Diocese de Aveiro. [16], [xvi] p., 88 fl. Edição fac-similada da 1ª edição de 1585.
MADAÍL, António Gomes da Rocha (ed.) (1959) — Milenário de Aveiro. Colectânea de Documentos Históricos. Vol. 1, 959-1516. Aveiro: Câmara Municipal. XVII, 330 p.
PINA, Rui de (1904) — Chronica de El-Rey D. Affonso V. Introd. G. Pereira. Lisboa: [s.n.]. 3 vol. [Vol. 1: 159 p.; vol. 2: 160 p.; vol. 3: 152, XIV p.] (Biblioteca de clássicos portugueses).

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