Tem Aveiro dois beatos de peso, um e outro canonizados na rua, mas não na Igreja Católica. Um, “São” Gonçalinho, é obra popular, de construção beira-marense, com dança dos mancos dentro da capela, e bodo de cavacas, atiradas do alto da mesma, com força de abrir cabeças; outro, “Santa” Joana, beatificada pela Igreja e canonizada pelo clero local, num trabalho de sapa que recua ao século XVI e se prolonga nos nossos dias.
Esta nossa beata, padroeira da cidade, com direito a culto local, e só local, entrou em Aveiro anunciada por um cometa, tal qual o menino de Belém, secou o pomar do mosteiro com a simples passagem do seu féretro, e ainda veio do outro mundo para dois dedos de conversa com as freiras mais chegadas (Dias, 1987: fl. 34v-35v; 82v; 85v-87v).
O dia 12 de Maio, data da sua morte, foi arvorado em feriado municipal, substituindo o dia 16 de Maio, em que se lembravam os mártires da Liberdade, vítimas dos algozes a soldo do absolutismo miguelista, e a revolução liberal iniciada em Aveiro.
Para meditação dos crentes e não-crentes, nesta data de sossego municipal, este ano ao serviço do patronato, já que ocorre num fim de semana, deixamos dois documentos e algumas datas, o princípio de um enredo que merecia alguns fólios de ficção. Bem hajam!
Documento 1:
Capítulo CLXVIII da Crónica de D. Afonso V
«De como a Infanta Dona Joana filha de El-Rei foi metida no Mosteiro de Odivelas; e daí ao Mosteiro de Aveiro, e doutras coisas que El-Rei fez.
A Infanta Dona Joana filha de El-Rei estava a este tempo em Lisboa, com tão grande casa de donas e donzelas e oficiais como se fora rainha; e porque fazia sem necessidade grandes despesas, e assim por se evitarem alguns escândalos e prejuízos que em sua casa, por não ser casada, se podiam seguir, El-Rei por concelho que sobre isso teve, logo no mês de Outubro deste ano a apartou e em hábito secular, e com poucos servidores a pôs no Mosteiro de Odivelas em poder da Senhora Dona Filipa sua tia, em idade de 18 anos. Donde foi depois mudada para o Mosteiro de Jesus de Aveiro. Onde sem casar com nome de honesta e mui virtuosa, acabou depois sua vida em idade de trinta e seis anos. E neste ano faleceu o Papa Paulo, e sucedeu em Roma, na cadeira de S. Pedro, o Papa Sixto IV, a quem El-Rei mandou com sua obediência Lopo de Almeida» (Pina, 1904: vol. 3, p. 68).
Documento 2:
Museu Regional de Aveiro, Livro dos Registos da Câmara da Vila de Avewo, do séc. XVII, fl. 20, v.
E porém mandamos ao nosso corregedor em a dita comarca, e aos juízes da dita vila e a quaisquer outros nossos juízes e oficiais e pessoas a que o conhecimento disto pertencer esta nossa carta for mostrada que não consintam aos sobreditos estar mais em ela que o tempo aqui por nós limitado. E cumpram e façam em tudo cumprir e guardar esta nossa carta como se em ela contém sem lhe nisso ser posto outra dúvida nem embargo algum porque assim é nossa mercê.
Factos e datas:
D. Afonso V, rei (1432-1481).
Rui de Pina, autor da Crónica de D. Afonso V (1440-1522).
D. João II, rei (1455-1495): filho de D. Afonso V; irmão da infanta Joana.
D. Jorge de Lencastre (1481-1550): filho de D. João II e de D. Ana de Mendonça, dama de D. Joana, a segunda mulher de D. Afonso V; duque de Coimbra; marquês de Torres Novas; senhor de Aveiro; senhor de Montemor; mestre da Ordem de Avis; mestre da Ordem de Santiago; foi criado em Aveiro, no mosteiro de Jesus, por sua tia D. Joana, passando para a Corte depois da morte desta.
Bibliografia:
DIAS, Nicolau (1987) — Vida da Sereníssima princesa Dona Joana filha d'El-Rei Dom Afonso o Quinto de Portugal. Aveiro: Diocese de Aveiro. [16], [xvi] p., 88 fl. Edição fac-similada da 1ª edição de 1585.
MADAÍL, António Gomes da Rocha (ed.) (1959) — Milenário de Aveiro. Colectânea de Documentos Históricos. Vol. 1, 959-1516. Aveiro: Câmara Municipal. XVII, 330 p.
PINA, Rui de (1904) — Chronica de El-Rey D. Affonso V. Introd. G. Pereira. Lisboa: [s.n.]. 3 vol. [Vol. 1: 159 p.; vol. 2: 160 p.; vol. 3: 152, XIV p.] (Biblioteca de clássicos portugueses).
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