quarta-feira, 7 de fevereiro de 2007

Antroponímia e toponímia (1)

Como podemos verificar em muitos versículos do Antigo Testamento, recua às brumas da história a tendência dos homens para emprestar o seu nome à terra possuída e cultivada. E, quando não era o próprio possessor a fazê-lo, lá estava o vizinho a tomar a iniciativa, pois era esta a forma mais expedita para identificar, perante outrem, a propriedade nomeada.
Na antiga Roma, até finais da República, usava-se o gentilício para indicar o parentesco com uma certa gens. Este antigo adjectivo — terminado em –ius, -ia, -ium (masculino, feminino e neutro) ou, mais raramente, em –enus —, agora parte do antropónimo romano (que incluía o prenome ou nome individual, o referido gentilício e o cognome, podendo ainda ter um ou mais sobrenomes, os chamados "agnomes"), servia também para identificar bens, obras ou actos do respectivo proprietário ou agente. Pertencem a este período formações como villa Aemilia (villa de Emílio, com Aemilia no feminino a concordar com villa), via Claudia (estrada de Cláudio, isto é, estrada mandada construir por Cláudio) e lex Canuleia (lei que se deve à iniciativa legislativa de Canuleio).
A partir dos finais da República romana, o uso dos gentilícios vai desaparecendo, substituído pelo sufixo possessivo –anus. Assim, a propriedade de um Emílio, que antes se denominaria fundus Aemilius, villa Aemilia, etc., receberia, nesta fase, o nome de fundus Aemilianus e villa Aemiliana. Na Gália e na Germânia romana proliferava então o sufixo celta –acus, com a mesma função de –anus, cujos vestígios podem ser hoje encontrados nos topónimos franceses em –ac, -at e alemães em –ach. Com a mesma função do –acus galo-germânico, era também possível encontrar o sufixo –obre, entre os Ártrabos do Noroeste hispânico, ou, na Lusitânia, o sufixo -eira/-eiro.
Na Hispânia, talvez entre os séculos V-VI, no período suevo-visigótico, começa a generalizar-se o uso do genitivo simples para denominar um prédio segundo o nome do seu proprietário, uma particularidade peninsular que desprezou a muleta do sufixo com valor topográfico. A tendência será para a simplificação, com total predomínio da forma elíptica — por ex.: Emili(i) — sobre a completa, que, neste caso, corresponderia a villa Emili(i). O fenómeno será de tal modo abrangente que acaba por absorver os nomes germânicos passíveis de latinização em –us, com genitivo em –i, o que leva a concluir pela sua extensão à língua falada, cujo onomástico deveria contar com "um sistema de dois casos, um em –o tirado do acusativo latino e com função de caso sujeito e regime, e outro possessivo, em –i (Piel, 1948: 14)". Este –i já devia pronunciar-se –e, emudecendo quando antecedido de r, l e c ou exercendo uma acção palatalizadora nos grupos –ni, -li, -ti e –di, que dariam lugar respectivamente a –nhe, -lhe, -ce e -je (Idem: 14-15).
Durante a Reconquista, quando o genitivo deixou de ser usado na linguagem cor­rente, a forma que passa a ser utilizada, com raras excepções (Fonseca, 1985: 101), baseia-se no acusativo, como de resto acontece com os nomes comuns. A partir daqui temos, para os topónimos deste tipo, a perífrase com ou sem a preposição de, ou a respectiva forma elíptica: Villa (de) Bermudo, ou simplesmente Bermudo.

A lenta formação dos falares romanços, a tendência para o nome único e o avanço do cristianismo, actuando em conjunto, terão sido os agentes responsáveis pela introdução de uma nova antroponímia. Com efeito,

"a criação contínua de novos sobrenomes abrange os mais variados aspectos semânticos: nomes derivados de cores, de animais, de pedras preciosas, de coisas marítimas, de qualidades e defeitos morais e físicos, de dogmas e festas da Igreja, de virtudes cristãs, do nome de Deus, de sentimentos de alegria e humildade, de nomes étnicos, de profissões, etc. (Piel, 1948: 7)".

Bibliografia:
FERNANDES, A. de Almeida (1997) — Paróquias suevas e dioceses visigóticas. 2ª ed. Arouca: Associação para a Defesa da Cultura Arouquense. 178 p. ISBN 972-9474-11-7. (Interessa a 2ª edição, porque esta referência prende-se com o respectivo prefácio; a 1ª ed., mais completa, mas sem o prefácio que interessa ao assunto tratado, data de 1968, de Viana do Castelo, e é uma separata do "Arquivo do Alto Minho").
FONSECA, Fernando Venâncio Peixoto da (1985) — O Português entre as línguas do mundo (Situação, história, variedades). Coimbra: Livraria Almedina. 349 p. (Colecção Novalmedina; 58).
PIEL, Joseph M. (1937-1945) — Os nomes germânicos na toponímia portuguesa. Lisboa: Centro de Estudos Filológicos. 2 vol., 303 p.
PIEL, Joseph M. (1948) — Nomes de «possessores» latino-cristãos na toponímia asturo-galego-portuguesa. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. 184 p. Separata de Biblos, vol. XXIII.

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