terça-feira, 27 de maio de 2008

JOÃO AFONSO DE AVEIRO (notas biográficas)

Discute-se ainda hoje quem de facto terá sido este João Afonso de Aveiro, que dá o nome a um poeta e a um navegador dos finais do século XV, havendo alguns autores que reúnem as duas facetas no mesmo indivíduo, enquanto outros optam por pessoas distintas.
A documentação conhecida permite-nos identificar apenas uma personagem com este nome. Referimo-nos ao filho de Afonso Domingues de Aveiro, o moço, cidadão de Coimbra, onde foi vereador (1424) e juiz (1426), e de sua mulher, uma senhora da família dos “Velhos”. Por sua vez, este Afonso Domingues era filho de outro Afonso Domingues, que também usava o apelido “Aveiro” e que aqui teria nascido.

Este último Afonso Domingues de Aveiro, o avô de João Afonso, casou com D. Maria Francisca, filha do alvazil geral de Coimbra Afonso Peres, tendo sido sobrejuiz em Coimbra e um dos procuradores às Cortes que se realizaram nesta cidade em 1385, nas quais o Mestre de Avis foi aclamado rei de Portugal. Foi também o cidadão indigitado por Coimbra para integrar o conselho privado de D. João I, embora se ignore se terá sido um dos escolhidos pelo monarca.
O primeiro Afonso Domingues de Aveiro era homem de grande fortuna, possuindo várias propriedades em Coimbra, Aveiro e Aradas, muitas das quais pertenciam a seus pais e a sua avó Maria Anes. O rol destes bens consta do testamento que fez em 1417 (vd. Madaíl, 1959: 156-159), através do qual vinculava todas as suas propriedades e muitos bens móveis à capela e morgado que instituiu na Igreja de S. Tiago em Coimbra, nomeando sua filha natural Maria Afonso, casada com Pedro de Alpoim, como primeira administradora deste vínculo. Tendo esta senhora morrido sem filhos, a administração da capela passou ao seu meio-irmão, o referido Afonso Domingues de Aveiro, o moço.
Afonso Domingues de Aveiro, o moço, teve pelo menos seis filhos: um outro Afonso Domingues de Aveiro, o terceiro administrador do vínculo, falecido sem geração, Catarina Velho, que morreu antes do pai, Isabel Velho, casada com Lopo de Alpoim, o velho, Branca Velho, Teresa Velho e o mais novo, o nosso João Afonso de Aveiro que, durante algum tempo, foi o quarto administrador da capela instituída por seu avô. João Afonso ter-se-ia apropriado da administração destes bens sem que para tanto tivesse legitimidade, que, em julgado, a irmã mais velha os conseguiu para si, transmitindo-os de imediato ao seu filho Lopo de Alpoim, o moço, que terá morrido cerca de 1488 e que, vinte anos antes, era juiz da relação de Coimbra.
A condição de último filho terá obrigado João Afonso de Aveiro a procurar, noutras paragens, um futuro mais promissor, o que, à partida, estaria facilitado pela formação recebida, na tradição de uma família que esteve sempre ligada aos altos cargos municipais de Coimbra.
Pensamos que este João Afonso reúne em si o poeta do Cancioneiro de Garcia de Resende e o fundador da feitoria de Gató (Benim), no Golfo da Guiné, e que terá sido, porventura, o proprietário dos ofícios que, mais à frente, fazemos convergir na sua pessoa.

Muito do que se tem escrito sobre a vida de João Afonso de Aveiro corresponde a uma leitura acrítica do que Barbosa Machado escreveu na sua Biblioteca Lusitana (vol. 2, p. 577), repetido mais tarde por Teófilo Braga na obra Poetas Palacianos. Ferreira Neves, um acrisolado estudioso das coisas aveirenses, chamava a atenção para muitas dessas incongruências, embora o eco das suas conclusões tenha sido quase nulo. Tudo indica que Barbosa Machado se enganou na filiação de João Afonso de Aveiro, e também quando lhe atribui a qualidade de criado de D. Diogo, o 4º duque de Beja e 5º duque de Viseu morto por D. João II em 1484.
Teófilo Braga, para além de seguir Barbosa Machado, acrescenta que João Afonso teria estado envolvido na conspiração que atentou contra a vida de D. João II, sendo esta a razão que o teria levado a ir «viver nas Ilhas». Para tanto estribou-se no título atribuído por Garcia de Resende a uma das poesias compiladas no seu Cancioneiro, poema que o seu autor, o coudel-mor Fernão da Silveira, dirige a João Afonso de Aveiro:

Trovas do coudel moor a Joam Afonsso daueiro, que se foy a viuer nas jlhas, e de laa escreueo que fyzesse algumas cousas por ele, em que entrou fallar a sua dama, e despachar outras com a senhora jfante, e co duque mas ysto veo no tempo da morte do duque.
Em nossa opinião, a explicação para este título poderá residir no conflito que opôs João Afonso a sua irmã Isabel Velho, pela posse da administração do vínculo instituído pelo seu avô, que veio a ser dirimido a favor desta última. O envolvimento de Fernão da Silveira, para além da amizade que o unia a João Afonso, poderia ter motivações parentais, considerando a possibilidade do coudel-mor do Reino ser parente de Catarina Álvares da Silveira, a mulher de João Caldeira, filho de Branca Velho e, por isso mesmo, sobrinho de João Afonso. Com efeito, este João Caldeira, vereador da Câmara de Coimbra em 1468, viria a ser o 8º administrador daquele vínculo.
Afastado da posse daqueles bens, João Afonso de Aveiro teria que procurar a sua independência nos altos cargos do Estado e na aventura marítima. Daí a hipótese de ser ele o cavaleiro João Afonso que, antes de 1463, ocupava o cargo de tesoureiro da moeda de Lisboa e que, nesse ano, foi provido no lugar de contador na cidade de Évora onde, por várias vezes, a Corte estanciou (Moreno, 1980: 894). Poderá ainda ser o João Afonso, cavaleiro da casa do rei, que, em 8 de Março de 1484, foi substituído por Rui Velho no cargo de almoxarife de Santarém (Moreno, 1980: 1081). As coincidências favorecem esta hipótese, se considerarmos que Rui Velho poderia ser seu parente, que sua mãe pertencia a esta família e, segundo Rui de Pina, ter sido nesse ano de 1484 que João Afonso de Aveiro chegou a Gató.
Não podemos, no entanto, ignorar as divergências a nível das fontes, no que se refere à saída de João Afonso para as «Ilhas», isto é, para terras ultramarinas. Se Rui de Pina aponta o ano de 1484, João de Barros (Década I, Liv. III, cap. 3) situa o acontecimento em 1486, informando que, de regresso a Portugal, trouxe consigo um embaixador do rei de Benim e uma amostra da pimenta africana. Mas as duas datas poderão corresponder a duas viagens, que nem seriam as únicas, caso haja correspondência entre o nosso biografado e o João Afonso comandante de um dos navios da frota de Diogo de Azambuja que, em 1481, viajou para o Golfo da Guiné com a missão de edificar a feitoria da Mina. a participação do navegador numa das frotas de Diogo Cão não tem qualquer suporte documental, fundando-se em leitura cabalística de alguns sinais das inscrições da chamada pedra de Ielala, encontrada nas cataratas do mesmo nome, no rio Zaire.
Se todas estas qualidades convergiram na mesma pessoa, João Afonso de Aveiro, nascido em Coimbra e com avós aveirenses, teria sido poeta, navegador e também homem de mercancia, ou D. João II não o teria encarregado de fundar e dirigir a feitoria de Gató ou Ugató. Devido à sua insalubridade, que teria estado na origem da morte de João Afonso em terras da Guiné, esta feitoria acabaria por ser abandonada ainda no reinado do Príncipe Perfeito.

Bibliografia:

BRAGA, Teófilo (1871) – Poetas palacianos. Porto: Imprensa Portuguesa. p. 263, 271-272, 286 e 369.

CRISTO, António (1951) – João Afonso de Aveiro: Introdução a um estudo sobre o famoso navegador aveirense. Aveiro. Arquivo do Distrito de Aveiro. Vol. 17, n.º 65 (1951) 3-22.

CRISTO, António (1956) – O poeta João Afonso de Aveiro. Porto. 21, [3] p.

CRISTO, António (1960) – Alguns problemas sobre João Afonso de Aveiro. Braga. 126, [2] p.

FREITAS, Joaquim de Melo (1878) – Violetas. Porto: Imprensa Portuguesa. p. 311-317.

MACHADO, Diogo Barbosa – Bibliotheca lusitana historica, critica, e cronologica. Na qual se comprehende a noticia dos authores portuguezes, e das obras, que compuseraõ desde o tempo da promulgaçaõ da ley da graça até o tempo prezente. Lisboa, 1741-1759. 4 vol.

MADAÍL, António Gomes da Rocha (org. leitura e revisão) – Colectânea de documentos históricos. I. 959-1516. Aveiro: Câmara Municipal, 1959. p. 156-159.

MORENO, Humberto Baquero – A batalha de Alfarrobeira: antecedentes e significado histórico. Coimbra: Universidade, 1979-1980. p. 894 e 1081.

NEVES, Francisco Ferreira (1957) – Naturalidade e família de João Afonso de Aveiro: navegador e poeta do século XV. Aveiro. Arquivo do Distrito de Aveiro. Vol. 23 (1957) 65-84;

NEVES, Francisco Ferreira (1959) – Para a história da estátua de João Afonso de Aveiro. Aveiro. ADA. Vol. 25 (1959) 280-285.

RESENDE, Garcia de (1902) – Crónica de D. João II, contendo a interessantíssima Miscelânea. Lisboa, 1902.

Sem comentários: