sexta-feira, 19 de janeiro de 2007

Mamodeiro, Mamarrosa e outras que tais

Na região de Aveiro existem alguns arqueotopónimos que apontam para o povoamento pré-histórico, um dos quais está absolutamente comprovado, na sequência de prospecção arqueológica de finais do século passado (Silva, 1997). Referimo-nos a "Mama" e "Mamoa", respectivamente do latim mamma- "mama, protuberância em forma de seio feminino, outeiro", e do latim mammula-, diminutivo do anterior, que ocorrem isolados e em expressões toponímicas, nalguns casos com aglutinação dos seus elementos.
Os topónimos em questão aludem a construções funerárias e situam-se nas freguesias orientais do concelho de Aveiro, como são os casos de Mama da Pega (localmente "Madepegas") e Mama Rasa na freguesia de Eixo, Mamoa na de Eirol, outra Mamoa e Mamodeiro na de Nossa Senhora de Fátima e Moita da Mamoa na de Oliveirinha. Com excepção de Mamodeiro, o principal lugar da respectiva freguesia, à qual devia ter dado o nome, considerando a sua importância histórica, todas as outras ocorrências pertencem à microtoponímia.
O topónimo Mamodeiro aparece nas inquirições de D. Dinis de 1287, quando um dos inquiridos nos fala dos "homeens vedros que pobrarom Mamoa do Eyro", isto é, os "homens velhos que povoaram Mamodeiro", identificados no documento como a geração anterior à do respondente, já que o seu sogro Pedro Gonçalves é expressamente incluídos entre eles (Krus, 1993: 134).
É possível que Mamodeiro tenha, nos elementos que o compõem, uma alusão directa à função funerária do monumento que lhe deu origem. Com efeito, talvez o elemento "Eiro" se filie num étimo pré-indo-europeu, com o significado de "morte", se considerarmos que, ainda hoje, a voz basca para "morte" é erio (Lopez-Mendizabal, 1976: 145) ou herio (Goikoetxea, 2002: 241) que, na evolução do galaico-português, daria eiro, em resultado da ditongação proveniente da atracção do -i- pela tónica e-.
As campanhas de escavações, dirigidas por Fernando da Silva neste monumento funerário, mostram o engenho do homem da cultura megalítica que, perante condições geomorfológicas específicas, diferentes da do seu povoamento habitual, nem por isso deixou de adaptar-se e de lhes responder com criatividade. Com efeito, no caso em apreço, não foi a falta de pedra que conseguiu evitar a construção do tumulus de Mamodeiro, referência indispensável para a demarcação do território das comunidades de pastores e agricultores, certamente já hierarquizadas, que, desde o IV milénio a.C. se foram sedentarizando junto das principais vias de penetração, entre as quais se destacavam os rios, ribeiros e respectivos vales, realidade por demais evidente em toda a zona da bacia do Vouga e dos seus afluentes, em cujas margens se multiplicam as mamoas, antas e castros.
A avaliar pelo que foi encontrado em Mamodeiro, apesar das sucessivas violações sofridas, e considerando a quase ausência de pedra na região, reduzida aos arenitos de Aveiro, Requeixo, Eirol e Mamodeiro e aos calcários do Carrajão e Mamarrosa (Teixeira & Zbyszewsky, 1976), o seu monumento funerário não corresponderia a um dólmen, mas antes a uma estrutura apoiada em grande contraforte, construída com recurso a "calhaus rolados de pequenas dimensões, ligados entre si por uma argamassa à base de sedimentos argilosos" (Silva, 1997: 84).
Mamarrosa é um outro topónimo da família, vila desde 2003 e freguesia do concelho de Oliveira do Bairro. O seu monumento funerário já tinha sido destruído em 1020, data de um documento referente à doação das vilas de Levira e de Lázaro ao mosteiro da Vacariça, em que uma das confrontações é descrita como "Ad occidentalem partem, per ubi dicunt mamoa rása ubi est illa heremita que vocitant sancti romani" [A Ocidente, pela chamada Mamoa Rasa, onde está a ermida que chamam de S. Romão] (LP-1: 134). E a mamoa rasa, isto é, arrasada, lá aglutinou em Mamarrasa, para dissimilar na mais poética Mamarrosa.

Havemos de voltar a esta temática, para fazermos o devido enquadramento no espaço nacional e galego. Os que quiserem aprofundar o tema na região do Vouga poderão recorrer, no que se refere a Lafões, ao levantamento, devidamente cartografado, de Amorim Girão (1921); para o curso do Vouga em geral, com possibilidade de enquadramento na realidade nacional ver mapa em Alarcão (1990: 103); para o litoral da região de Aveiro é também possível comparar os dados da microtoponímia com os dados da prospecção arqueológica, através da respectiva cartografia (Silva, 1993: 28-29).

Bibliografia:
ALARCÃO, Jorge, coord. (1990) — Portugal: das origens à romanização. 1ª ed. Lisboa: Editorial Presença. 558 p. (Nova História de Portugal; vol. 1) Dir. col. de Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques. ISBN 972-23-1313-4.
GIRÃO, A[ristides] de Amorim (1921) — Antiguidades pre-históricas de Lafões. Coimbra: Imprensa da Universidade. 68 p. (Memórias e Notícias; nº 2). Publicações do Museu Mineralógico e Geológico da Universidade.
GOIKOETXEA, Jon Akordagoikoetxea (dir.) (2002) — Hiztegi Handia: Castellano-Euskara / Euskara-Gaztelania [Grande Dicionário Castelhano-Vasco / Vasco-Castelhano]. Barcelona: Spes Editorial. X, [4], 547, IV, 481 p. (Vox). ISBN 84-8332-348-6.
KRUS, Luís (1993) — D. Dinis e a herança dos Sousas: o inquérito régio de 1287. Estudos Medievais. Porto: Centro de Estudos Humanísticos. Nº 10 (1993), p. 119-158. Com dados referentes à inquirição de 1287 nas honras de Eixo e Ois (Julgado do Vouga). O inquérito encontra-se no A.N.T.T., Gaveta VIII, m. 4, nº 12, com cópia em Leitura Nova no Livro 1 de Direitos Reais, fls. 223-231.
LIVRO PRETO DA SÉ DE COIMBRA. (1977-1979) Ed. de COSTA, Avelino de Jesus da; VENTURA, Leontina; VELOSO, M. Teresa. Coimbra: Arquivo da Universidade de Coimbra. 3 vol. Citados como LP-1, LP-2 e LP-3.
LOPEZ-MENDIZABAL, Isaac (1976) — Diccionario Vasco-Castellano. 6ª ed. San Sebastian: Editorial Auñamendi. 450 p. (Colección Azkue; 9). ISBN 84-7025-104-X.
SILVA, Fernando A. Pereira da (1993) — A mamoa de Mamodeiro: A ocupação do litoral de Aveiro durante a pré-história recente. Boletim Municipal de Aveiro. Aveiro: Câmara Municipal. Nº 22 (Dez. 1993), p. 25-32.
SILVA, Fernando A. Pereira da (1997) — Relatório da campanha de escavações 3/94: Mamoa de Mamodeiro, Nossa Senhora de Fátima, Aveiro. Boletim Municipal Cultura e Património. Aveiro. Número único (Dez. 1997), p. 81-87.
TEIXEIRA, Carlos; ZBYSZEWSKY, Georges (1976) — Carta Geológica de Portugal na escala 1/50.000. Notícia explicativa da folha 16-A: Aveiro. Lisboa: Serviços Geológicos de Portugal. 39 p. + 1 carta.

Sem comentários: