quarta-feira, 10 de janeiro de 2007

Sarrazola (freguesia de Cacia, Aveiro)

O topónimo "Sarrazola", identificando um lugar da freguesia de Cacia, do concelho de Aveiro, permite mais que uma interpretação, mormente se considerarmos as diferentes formas documentadas historicamente, como "Cerazolla" e "Çerazolla" (1446), "Çarrazola" (1527), "Sarrasolla" (1689) e "Sarrazolla" (1721 e 1732). Ressalta a flutuação -e-/-a- da primeira sílaba, a evolução da constritiva vibrante -r- > -rr-, porventura representando alteração no modo de articulação, com passagem de alveolar a velar, e o duplo -ll-, do último elemento da palavra, responsável pela permanência do fonema que, se fosse um -l- simples, teria caído em posição intervocálica, salvo em área de influência moçárabe.
Uma hipótese a considerar filiaria o topónimo no substrato pré-romano, porventura ibero-vasconço, partindo do actual basco saratz "salgueiro" (Lopez-Mendizabal, 1976: 354) + basco -ola, "sufijo que denota lugar de, conjunto de" (idem: 323), o mesmo é dizer, em português de lei, "salgueiral".
E teríamos o problema resolvido, se este registo toponímico estivesse circunscrito à zona de influência ibérica, onde encontrámos os parentes muito chegados Cerésola (Huesca, Pirinéus espanhois) e Cérizols (Ariège, Sul de França). Mas, ao avançarmos com a pesquisa, deparámos com parentes do mesmo grau no Norte da Itália, como Cerasolo, Ceresola e Cerezzola na "Emilia Romagna", Correzzola em "Véneto", Sarizzola no "Piemonte", Sarezzo e Seriola na "Lombardia". E com esta viagem, à procura da parentela, achámo-nos em pleno assentamento dos Lígures, pelo que abriremos um parênteses, dando voz a Francisco Villar:
El nombre de ese pueblo [los ligures] ha perdurado hasta nuestros días en el de la actual región italiana de Liguria, que comprende, de Este a Oeste, las provincias de La Specia, Génova, Savona e Imperia. Pero en la Antigüedad ocupó zonas mucho más extensas. La colonia griega de Massilia (Marsella) estaba en pleno territorio de los saluvios, una de las tribus ligures. Y a esa gente perteneció todo lo que es hoy la Costa Azul y la Riviera. El territorio ligur se extendia desde la ciudad de Pisa y el río Arno al Este, hasta el Ródano al Oeste. […] En un sentido más amplio, se habla de ligures en toda la costa, también al oeste del Ródano, hasta la desembocadura del Ebro. Y para esta prolongación occidental a veces se habla de ibero-ligures (Villar, 1996: 384).
Perante este quadro, poderíamos continuar a bater na tecla do "salgueiral" igual a "Sarrazola", considerando a fala vasconça um empréstimo directo dos lígures, ou, porventura, por intermédio dos iberos. Não é por acaso que hoje se fala de ibero-basco, quando nos referimos aos parentescos linguísticos destes dois povos, sem que possamos afirmar se se tratava ou não de uma única língua, ou se essas similitudes são o resultado de empréstimos mútuos. De qualquer forma, face aos conhecimentos actuais, não temos possibilidade de atribuir muitas dessas falas a um ou a outro desses dois povos.
E o problema ficaria quase por aqui, se Bartolomeu Conde (1996), procurando as origens remotas da sua terra natal — "Sarrazola" —, não tivesse corrido Ceca e Meca, acabando por receber informações contraditórias, mas, também, no que directamente nos interessa, por descobrir mais uns tantos "Sarrazola" na finisterra atlântica. Desta forma, temos de nos haver com mais uma "Ribeira de Sarrazola" (Alter-do-Chão), numa zona de ocupação romana, bem atestada pela soberba ponte de Vila Formosa, sobre a Ribeira de Seda, na qual desagua a referida Ribeira de Sarrazola [esta ponte servia a antiga via romana que unia Lisboa a Mérida (Proença, 1983b: 433-434)]; uma "Quinta de Sarrazola" (Penhalonga, Marco de Canavezes), em zona castreja, sobre o Douro, com pequeno riacho e salgueiral, no concelho do Marco de Canavezes, em cuja área ficava a antiga "Tongobriga" (Freixo), importante centro urbano do período romano (Alarcão, 1990: 373, 477); um lugar (e quinta) de "Sarrazola" (Colares, Sintra), perto da Ribeira de Colares e junto do seu afluente Ribeiro do Corvo, mais uma vez com um vasto salgueiral e com Colares a apresentar também fortes vestígios de ocupação romana (Proença, 1983a: 554); e outro lugar de "Serrazela" ou "Sarrazela" (Sátão), próximo do Vouga, em zona castreja, com um vale rico em água onde não falta o omnipresente salgueiral; como sabemos, Viseu, que dista cerca de 20 Km do Sátão, foi sede de uma civitas do período romano e um ponto importante de confluência de diferentes vias romanas (Alarcão, 1990: 378-381); muito perto de Sátão, o lugar de Silvã (por certo uma antiga villa Silvana) é um indício toponímico que aponta para a presença romana nestas paragens (GEPB, 27: 784).
Perante este enunciado de topónimos afins, e considerando os elementos fornecidos, constatamos que todos estes lugares têm algo em comum: água, salgueiros e presença romana. Destes pressupostos poderíamos concluir que todos eles são alheios à Hispânia, resultando do assentamento de famílias oriundas do Norte da Itália, realidade por demais documentada para o período da dominação romana, famílias essas que teriam sido responsáveis pela atribuição desta toponomástica. E o mesmo poderia ter acontecido em relação às poucas ocorrências detectadas no resto da Península.
No entanto, considerando a raiz indo-europeia *sar "fluir, discorrer" (Villar, 1996: 96), bem como as falas do sânscrito sarit "ribeira, curso de água, nascente" e saras "água; lago, lagoa" (Huet, 2006: 381, 382) e do trácio sara "corrente, torrente, curso de água" (Babaev & Judicibus, 2002), que nos aparecem nestes topónimos e em centenas de outros por toda a Europa, principalmente em hidrónimos ou em povoados nas margens de cursos de água, teremos de apontar uma outra hipótese que explique o nosso "Sarrazola", ainda Cerazolla no século XV.
A título de exemplo, sirvam-nos as fontes Sora (Langás, Saragoça), Sar (Santa Maria del Campo, Burgos), os arroios Sara (Rodeiro, Pontevedra), Sarrión (Coaña, Astúrias), Sarrón de la Forada (Boñar, Astúrias), Sarave (Bacáicoa, Navarra), a balsa Sarasa (Urdiáin, Navarra), o barranco de Sarnes (Lascurre, Huesca), Sarria (Lugo, que tomou o nome do seu rio: Sarrie em 1074), os rios Sor (Galiza), Sarno (Golfo de Nápoles), Sarre ou Saar (afluente do Reno, em grafia francesa e alemã), Serio (Lombardia), as ribeiras Sor (Alentejo) Ser (Galiza, afluente do Navia) e, com alteração árabe do /s/ inicial, os rios Jarama (Madrid), Jaramillo (Valladolid) e Xarrama (Alentejo). São hidrónimos antiquíssimos, certamente devidos a povos pré-celtas ou paraceltas, das primeiras vagas indo-europeias a chegar ao Ocidente.
Por tudo isto, "Sarrazola" poderá também designar um curso de água, tanto mais de aceitar no território lusitano, quanto sabemos que a sua língua, para além das desinências morfológicas, recorria à ampliação por "un sufijo, y en ocasiones se trata de derivaciones de otros nombres así formados, acumulándose los sufijos". "Sarrazola" podia provir de sar- + -as (desinência do nominativo do singular) + -ola (elemento derivativo -l- precedido da vogal -o- atestado nas línguas célticas (Palomar Lapesa, 1957: 116-117,128).

bibliografia:
ALARCÃO, Jorge, coord. (1990) — Portugal: das origens à romanização. 1ª ed. Lisboa: Editorial Presença. 558 p. (Nova História de Portugal; vol. 1) Dir. col. de Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques. ISBN 972-23-1313-4.
BABAEV, Cyril; JUDICIBUS, Dario de (2002) — Dizionario generale Tracio. Em linha no endereço http://www.dejudicibus.it/dizionario/index.html.
CONDE, Bartolomeu (1996) — Sarrazola, terra dos salgueiros: apontamentos etimológicos. Aveiro: edição do autor. 62 p.
COSTA, Mário Alberto Nunes — A Provedoria de Esgueira. Arquivo do Distrito de Aveiro. Aveiro. Vol. 24, nº 93 (1958), p. 53-80.
GEPB: GRANDE ENCICLOPÉDIA PORTUGUESA E BRASILEIRA
HUET, Gérard (2006) – Héritage du Sanscrit: Dictionnaire sanskrit-français. Em linha no endereço http://sanskrit.inria.fr/Dico.pdf
LOPEZ-MENDIZABAL, Isaac (1976) — Diccionario Vasco-Castellano. 6ª ed. San Sebastian: Editorial Auñamendi. 450 p. (Colección Azkue; n.º 9). ISBN 84-7025-104-X.
MADAIL, A. G. da Rocha — Informações paroquiais do distrito de Aveiro de 1721. Arquivo do Distrito de Aveiro. Aveiro. Vol. 1, nº 1(1935), p. 37-46; vol. 1, nº 4(1935), p. 325-332; vol. 2, nº 6(1936), p. 151-160; vol. 2, nº 7(1936), p. 237-241; vol. 2, nº 8(1936), p. 293-306; vol. 3, nº 9(1937), p. 29-46; vol. 5, nº 18(1939), p. 139-141; vol. 8, nº 31(1942), p. 192-196.
PALOMAR LAPESA, Manuel (1957) — La onomástica personal pre-latina de la antigua Lusitania: estudio lingüístico. Salamanca: Colegio Trilingüe de la Universidad, 1957. 168 p. (Theses et Stvdia Philologica Salmanticensia; n.º 10).
PROENÇA, Raul, ed. (1983a) — Guia de Portugal I. Generalidades. Lisboa e Arredores. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983.

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VILLAR, Francisco (1996) — Los Indoeuropeos y los orígenes de Europa: Lenguaje e historia. 2ª ed. corr. e muy aument. Madrid: Editorial Gredos. 614 p. (Manuales). 1ª ed.: 1991. ISBN 84-249-1787-1

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