terça-feira, 30 de janeiro de 2007

LEIRA, uma irmã celta do "chão" latino

"Apesar das dificuldades semânticas e fonéticas", como expressamente se diz no Houaiss, quase todos os dicionaristas apontam o latim glarea, ae "terreno com muito cascalho, areal, cascalho, saibro, areia grossa" como o étimo de "leira". O dicionário de Houaiss vai mais longe, considerando-o um vocábulo panromânico e aduzindo exemplos da sua presença em línguas como o romeno (ghiaja), o engadino (glera), o friulano (glerya), o provençal (glaira), o aragonês (glera) e o espanhol (glera). Mas, quando tentamos comprovar a legitimidade destas conclusões, esbarramos com o significado dos casos apresentados, todos de acordo com o étimo latino, mas nenhum a aproximar-se do português "leira", entendido como "pequeno campo cultivado".
As dificuldades centram-se nos aspectos semânticos, suficientes para os lexicógrafos falarem de uma "origem controversa" para o nosso "leira", já que, se os problemas fossem apenas de cariz fonético, teríamos alguns precedentes para a queda do g- inicial integrado no grupo consonântico gl-, como é o caso do latim glande-, que deu o português "glande", mas também "lande" (Nunes, 1989: 96). Convém no entanto sublinhar que este fenómeno apenas surge documentado a partir do século XV, enquanto para "leira" temos já larea em 870, laria em 921 e a forma actual em 984, sem que nos apareça a presença do g- inicial a firmar a suposição do étimo latino glarea-. Compulsando o Liber Fidei da Sé de Braga, um importante cartulário com documentos do século VI a XIII, encontraremos dezenas de referências a este apelativo, principalmente sob as formas larea e laria.
O que dissemos para o português "leira" é igualmente válido para o galego leira "terreo de labranza; porción de térreo cultivado", também no masculino leiro "leira pequena" e nos derivados leirada "anaco de monte de boa calidade" e leirado "cantidade en froito que produce unha leira".
Este nome comum deu lugar a vários topónimos em Portugal e na Galiza, com raras ocorrências a sul do Vouga e grande concentração a norte do Douro. Em Portugal encontramos principalmente as formas Leira e Leiras, isoladas ou integradas em expressões toponímicas, mas também Leirada, Leiradas, Leiradelo, Leirados, Leiro, Leiros e Leirós.
Na Galiza aparecem as formas Leira e Leiras, com e sem artigo, isoladas ou em expressões toponímicas, Leirado, com e sem artigo, Leiro e Os Leiros, representando mais de quatro dezenas de lugares, dez paróquias e dois concelhos.
Considerando os limites geográficos da presença destas vozes, inclinamo-nos para uma fala céltica, galaico-lusitana, porventura com alguma passagem pelo antigo germânico, no caso o Suevo, onde chegaremos por aproximação, pois desconhecemos as realizações da sua língua. Para o superestrato germânico, apontamos os exemplos do dinamarquês ler "argila", do islandês leir "lama, barro, argila" e leira "área lamacenta, periodicamente inundada, ao longo das margens dos rios e dos lagos", sueco lera "húmus; argila" e norueguês leir "campo".
No que respeita ao substrato, importa salientar que, para "chão, campo, terreno", o céltico responde com as vozes do gaélico escocês làr, irlandês e irlandês antigo lar, galês llawr, córnico antigo lor, bretão antigo laur e bretão leur.
A raiz indo-europeia plā- "largo, extenso, aberto; alargar, alargar-se", donde derivam todas as formas célticas enunciadas, é a mesma do latim planus, a, um "plano, liso, igual", étimo do adjectivo português "chão", com o mesmo sentido, que, em evolução semântica, substantivou nos dois géneros — "chão" e "chã" — e veio a significar "pequena propriedade".

Bibliografia:
BEAUMONT — Dictionnaire Freelang : Suédois-Français et Français-Suédois. Descarregável em linha, no endereço
FORGEOT Eric; BEAUMONT [et al.] — Dictionnaire Freelang : Norvégien-Français et Français-Norvégien. Descarregável em linha, no endereço
LEDO CABIDO, Bieito (ed.) [1999-2006] — Enciclopedia Galega Universal. Vigo: Ir Indo Edicións. 16 vol. ISBN 84-7680-288-9. Vd. vol. 11, p. 126-128.
NUNES, José Joaquim (1989) – Compêndio de Gramática Histórica Portuguesa: Fonética e morfologia. 9ª ed. Lisboa: Clássica Editora. XVI-454 p. ISBN 972-561-172-1.
UNITED STATES Geological Survey — Icelandic-English Glossary of Selected Geoscience Terms. Em linha, no endereço: http://pubs.usgs.gov/of/1995/of95-807/geoicelandic.html#glossary
VANDERPOTTE, Philippe; BEAUMONT — Dictionnaire Freelang : Danois-Français et Français-Danois. Descarregável em linha, no endereço

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