terça-feira, 3 de abril de 2007

O sal de Aveiro

Numa altura em que tanto se fala do sal de Aveiro (pelo menos cá na urbe), cuja safra se iniciava por esta altura, com a chamada "feira dos moços" (quando os marnotos contratavam os moços), lembro aqui uma pequena reportagem que fiz, já lá vão 35 anos, era então bastante jovem.
Hoje, as queixas são as mesmas, mas há infinitamente menos marnotos e marinhas a funcionar...
É a minha homenagem ao saudoso José Gamelas, o "Ti Zé Gago", já que, na Beira-Mar aveirense, ninguém conhece ninguém pelo nome, mas sim pela alcunha.

Marinhas e marnotos*

Sábado de Agosto. O dia acordou pardacento e remelado, com o sol incapaz de desventrar o céu. Deixan­do para trás a Senhora das Febres, acompanhámos o Canal de S. Roque até à ponte dos degraus [Ponte de Carcavelos], de que su­bimos metade e descemos outra.

Aveiro: Canal de São Roque e Ponte de Carcavelos

Partia à descoberta de uma actividade em decadên­cia, de economia periclitante, cujas características prin­cipais ainda são os caprichos do tempo e a têmpera dos homens. O meu companheiro, cagaréu de gema, era fi­lho de marnoto dos quatro costados e conhecedor pro­fundo da região marnoteira.
Atravessando o canal entrámos nas ma­rinhas, que se iam sucedendo belas e iguais, umas animadas de gaiato bulício, outras tristes e abandonadas a fartarem-se de lamas e limos. Os guarda-rios sobrevoavam os viveiros em voo picado, ou saltitavam alegres nos machos, em procura de peixe saboroso. Aqui e ali borrelhos e fuselas procuram sobrevi­ver, emprestando com a sua beleza mais ale­gria e movimento à panorâmica bucólica das marnotas. Os maçaricos também por aqui abundavam, mas a caça devastadora afugen­tou-os para zonas menos batidas, mais se­guras.
De quando em quando surge um esteiro que é preciso atravessar, mas lá está a pran­cha que dança, enfiada pelo meio no barro­te que se enterra no leito. Se a maré está alta fácil se torna rodar a tábua, para o saleiro ou a bateira passar.
Pelo esteiro da Moça já se vislumbra a azáfama na marinha das Duas Vitelas (Norte e Sul). Um pouco mais além é a Cale da Veia, que vai da Lota aos Bulhões. Abundam os cães vadios, que os ratões sempre vão dando para todos. À nossa frente seguia um completamente encharcado. Integram-se com facilidade no meio ambiente e não há esteiro ou cale que lhes barre o caminho: destemidos metem-se à água, esteja ela quente ou gelada.

Marinhas de Aveiro: malhadal com monte de sal e palheiro

— Ora então muitos bons dias!
— Deus o guarde, amigo!
A faina não parou. Desde as seis da manhã que as alfaias se mexiam irrequietas nas mãos do marnoto e dos três moços. Palavra puxa palavra lá nos íamos entendendo, entre o rumorejar de rasoilas e galhos e a tradicional boa disposição da beira-mar de Aveiro. A safra já começou há muito.
Pela Feira de Março já o marnoto se passeava pe­las Pontes ou pelos Arcos em procura de moços que o quisessem coadjuvar na safra prestes a começar.
As tabernas de que se semeia a zona ribeirinha são depois testemunhas dos alborques em que, entre petis­cos e bom vinho, o contrato é solenemente selado. Mas os homens de hoje não são como os de ontem. Quantas vezes, depois de comidos e bebidos, desaparecem para mais tarde se ajustarem com outro marnoto, que por­ventura lhes ofereça melhor contrato.
— Hoje já não há homens! Fique-se com essa; já não há homens com palavra! — isto me ia dizendo o senhor Gamelas, um dos últimos marnotos de Aveiro.
— Quem se meter na cerveja está trabalhado; esta vidinha só dá para os tremoços.
Os marnotos de Aveiro estão a acabar; não há ne­nhum a aprender. Agora vêm das Gafanhas, mas tam­bém são poucos.
— Agora os moços vêm de Calvão e da Gafanha. Não se trabalha metade do que antigamente. Vinham a pé da Vagueira para as marinhas e aqui ficavam dor­mindo nos palheiros. Só iam a casa aos fins de semana e até de quinze em quinze dias. Agora vêm de motori­zada e querem abalar cedo. E ai do marnoto se larga às seis: para o ano já não tem moços.
— Tive um moço da Gafanha que ajustei por quatro contos mensais. Ao fim da primeira semana queria um adiantamento de dois contos. Não lhos dei até porque não os tinha. Mais outra semana e já queria os quatro: «que a minha mulher vai para o Hospital, que assim se deixa morrer uma pessoa». Não lhos dei e ainda bem. Desapareceu-me e vi-me aflito para conseguir outro. Vim a saber que era tudo mentira: a mulher estava mais sã que um pêro.
Pelo caminho, e noutra marinha, quedara-me a olhar a agilidade felina de um moço, a encher canastras e correr veloz com elas à cabeça até à eira. Fi-lo notar.
— É o Francisco Ventura. Há poucos como esse e hoje já não se encontram. Sabe! Têm um homem a menos: está doente. E é preciso trabalhar assim, senão, com esta neblina, ficam sem o sal que está nos meios. Começaram a safra em fins de Abril e só a termi­narão em meados de Setembro, quando os sinos da Se­nhora das Febres se fizerem ouvir a anunciar as festas. É a festa dos marnotos que quando os ouvem dizem: «Quem não tem fizesse-o». Com efeito, os que não tra­balharam até essa altura, também não é depois que con­seguirão recuperar o tempo perdido. Com as primeiras chuvas outonais, a feitura do sal terá de esperar pelo ano seguinte.
Os cagaréus gostam das suas festas. Os pescadores da ria quase acabaram, mas S. Gonçalinho ouve os fo­guetes todos os anos e a tia Rita Faneca continua a ser vedeta na “dança dos mancos”, lá mesmo, portas adentro da capela. Os carreiros, que noutros tempos levavam o sal nos seus carros de bois, da Ponte de Pau para os va­gões do Vale do Vouga, também desapareceram. No entanto o seu mártir S. Sebastião continua a escutar anualmente a música do arraial e foguetório abundante.
Todos cuidam das suas capelas: S. Sebastião ainda este ano [1972] ganhou fachada de azulejo; S. Gonçalinho lá está risonha, bem vestida, repleta de painéis azulejados a lembrar a comissão do ano de tal; a Senhora das Fe­bres foi restaurada e bem caiada — a chave tem-na a tia Maria Ferroa, que a costuma alindar por dentro.
A feitura do sal só começa em Junho. Os primeiros dois meses são ocupados com a preparação da marinha: são as almanjarras a arrastar lamas, as rapinhadeiras a raspá-la das extremidades dos tabuleiros, os círcios a aplainar os cristalizadores e a puxar a humidade ao cimo; são ainda os muros, muritos, machos e bombas que é necessário reconstruir. Trabalho extenuante de cuja perfeição depende a qualidade e quantidade de sal a produzir.
Depois, em lua cheia ou lua nova, aquando das marés vivas, enchem-se os viveiros, que a água nessa altura tem um bom grau de salinidade. De quinze em quinze dias torna-se a abrir o tomadoiro do viveiro, para que ele recupere da água perdida com a fabricação salineira.
A ria está toda assoreada e as marinhas não cons­tituem excepção. Viveiros e algibés quase desaparecem em moliço.
— Acabaram as piscinas — explica o senhor Ga­melas. — Os “Moles” da Gafanha Baixa e da Murtosa roubavam-nos o peixe todo. Não queriam trabalhar. Vi­viam do roubo de peixe e sal. Além disso estão a desa­parecer os moliceiros, que todos os anos as limpavam: os poucos que ainda por aí há ficam-se pela ria, não entram nas marinhas. Enquanto isso o senhor Gamelas não parava: de galho empunhado quebrava a marinha, arrastando para o meio dos cristalizadores o sal das extremidades. Ta­buleiro que ele largasse logo era invadido por laborio­so moço que, de rasoila na mão, procedia ao rer da sa­lina, puxando o sal para a extremidade do cristalizador mais próxima do malhadal. Já outro, em braçadas va­lentes de rapão, ia enchendo a canastra que, a espirrar sal pela borda fora, logo corria veloz à cabeça do car­regador, rumo à eira onde se erguiam os montículos brancos e cónicos.
— Daqui a pouco vamos ugalhar — explica-me ele. — Quando a marinha começa a ter água velha, quando encalda, faz sal que parece pregos. É preciso mudar a água de baixo para cima.
— Teremos ainda que bulir alguns meios. Face ao meu olhar interrogador, sorriu-se e con­tinuou:
— Quando o calor começa a despertar formam-se as peles de sal que ali está vendo. Com o galho agita­mos a água para que elas desapareçam, mas sem tocar no chão, para o sal não se agarrar à praia.
— De tarde iremos amanhar o mandamento. Está a ver lá ao fundo o viveiro e o algibé? A isso chamamos nós as comedorias. O mandamento vem a seguir: é o conjunto do caldeiro, sobrecabeceira, talhos e cabeceira. Tiramos as palmetas das bombas e a água passará pe­las peças do mandamento até entrar nas carreiras que a levarão aos meios. Amanhã teremos novo sal.
— Isto é uma vida dos diabos! São cinco meses con­secutivos de trabalho. Até ao domingo: fazemos tudo; só não se amanha o mandamento.
Na peugada de um dos moços, que ia buscar outra alfaia, subi ao malhadal para espreitar o palheiro. Era um casoto de talvez seis metros quadrados, se tanto, em tijolo e cal. Ao fundo jazia a tarimba, enfiada na pa­rede, a lembrar o tempo em que os moços lá dormiam; um pouco acima das nossas cabeças um andar de barro­tes, onde as alfaias se arrumavam em profusão: pás de toda a espécie e feitio, rapinhadeiras, almanjarras, rasoilas e rapões, galhos, palmetas de todos os tamanhos. A tarimba estava pejada de batatas: eram os moços que moravam longe e ali faziam o almoço.
As ferramentas fizera-as o senhor Gamelas. É um dos poucos a saber fazê-las e a possuir os respectivos moldes. Até a pequena bateira, que um pouco mais à frente repousa no esteiro, foi feita por ele.
Também é calafate. Depois de correr cinco meses pelas salinas, calções e camisola, pés vermelhos e greta­dos, corpo negro de sol, mestre Gamelas é calafate nos estaleiros da Gafanha durante sete meses.
Desci novamente aos meios. Marnoto e moços, de pele curtida e causticada pelos desvarios do tempo, con­tinuavam a sua labuta, pés enfiados em água e sal.
— A vida de marnoto é uma sorte: se o tempo ajuda ganha-se algum, se não ajuda não se ganha nada. A ex­ploração é a meias, mas nós temos de pagar areias e bajunças, previdência, seguro, fazenda, câmara, de­semprego. Não queira saber! Em anos muito bons so­bram-nos dezassete ou vinte contos. Veja lá se isto é paga para cinco meses de trabalho.
— Estes últimos três anos foram de produção muito fraca. O sal não tem dado para as despesas. Veja bem que há vinte e tantas marinhas a monte. Três anos de prejuízo é muita coisa. Este ano há muito sal, mas não há quem o tire: com mais moços faria muito mais sal.
Estoicamente, enquanto desabafa trabalha. E con­tinua:
— Já tivemos quem se interessasse por nós e lutasse nos jornais pela nossa classe. Um dos últimos foi Antó­nio Cristo. Que a terra lhe seja leve! Era um grande homem. Mas os que nos defendem são deitados ao aban­dono. Olhe que chegou a haver uma reunião nos Bom­beiros para dar o nome de António Cristo à Rua do Vento, que nós assim o queríamos. A Câmara prometeu-o, mas já lá vão dois anos e nada. Era um grande ho­mem, um grande jornalista.
— Ponha os olhos nesses montes de sal. Alguns já o pajão os alisou e estão prontos a ser cobertos. Mas quem desencanta bajunça este ano? Não há nenhuma. Se começa a chuva o sal perde-se todo.
Este ano o tempo não foi padrasto. Os montículos alvos e cónicos sucedem-se ininterruptamente, multipli­cando-se às centenas, até a linha do horizonte no-los es­conder. Se a crise dos anos anteriores não obrigasse muitos proprietários a abandonar a exploração das suas salinas, muito maior seria a produção. Mas nem tudo são rosas:
— Não percebo isto este ano. Nem quero perceber. Já era tempo de se começar a vender o sal e nada. Sem­pre quero ver onde vou buscar dinheiro para pagar aos moços. Veio muito sal de Itália para o armazenista de Ovar, que dizem ter prioridade. Só depois podem come­çar a vender este. A UNITECA também deixou de com­prar sal; agora parece que gasta das minas. O comércio havia de ser livre, como lá em baixo.
Não lobrigam as causas da excepção: o salgado de Aveiro tem de ser vendido através do Grémio da La­voura, a preços por ele impostos. Nas salinas de Setúbal e Algarve a venda é livre: é o produtor que vende direc­tamente ao comércio e à indústria, sem quaisquer inter­ferências.
A safra foi boa, mas estão na contingência de ver a importação e a burocracia empurrar o sal para as chu­vas, para a destruição.
A crise tem acabado com os marnotos e os que sub­sistem têm contratos especiais com os patrões, que su­portam parte das despesas e que só assim evitaram o abandono das salinas. Muitos proprietários conservam-nas com prejuízos sucessivos, porque o abandono acar­reta-lhes despesas enormes e há sempre esperança de um ano melhor. O desassoreamento fica muito caro e marinha que seja abandonada um ano no outro produz metade, em qualidade e quantidade. Mestre Gamelas continua:
— Se isto dura muito acabam os marnotos. Qual­quer dia só há encarregados. Esses sim, podem ter gos­to no trabalho: fazem os seus contratos com os proprie­tários e haja ou não produção têm o seu garantido. As despesas são todas por conta do patrão.
A hora do almoço já tinha passado. O medo da bru­ma, que o sol teimava em não romper, obrigava-os à lufa-lufa, não fosse o chuvisco que já caía estragar o sal que ainda repousava nos cristalizadores.
Regressámos. Os velhos marnotos, que a idade em­purrara para fora das lides, empoleiravam-se nos de­graus da ponte, com os olhos baços e saudosos a abra­çar o horizonte de sal. Alguns apoiavam-se em benga­las, que o reumatismo não costuma perdoar a quem passa o ano na água. Logo mais, ao cair da tarde, animam-se as tabernas do Joaquim Frio, da Maria de Pardilhó ou da Rosa do Polícia, agora António d' Oiã. É o convívio de marnotos e moços a espairecer de um dia de canseiras, para o que nem ao menos há justa paga...
Afasto-me, braço dado com as casinhas que economias marnoteiras ergueram com sacrifício: pequenas e estreitas, lavadinhas de azulejo, porta e janela, uma frente…

* Reportagem de Agosto de 1972. 1º prémio «Reportagem» dos Primeiros Jogos Florais Nacionais do CAT COELIMA. Publicado in Boletim Coelima. Pevidém: Sociedade Têxtil Albano Coelho Lima. Ano 10, n.º 111 (Dez. 1972), p. 23-25.

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