quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

Antroponímia e toponímia (5): Em Coimbra, a fusão norte-sul

A segunda metade do século XI é um período de nítido avanço das forças cristãs. Fernando Magno reconquista Coimbra em 1064, auxiliado pelo conselho e participação pessoal de Sisnando, um moçárabe de Tentúgal que, raptado pelos muçulmanos, permanecera longo tempo na Corte de Sevilha, onde desempenhou o elevado cargo de vizir.
Incompatibilizado com o rei de Sevilha, Sisnando aparece na corte de Fernando Magno, onde vê as suas qualidades reconhecidas pelo rei cristão, que lhe entrega o governo de Coimbra e da Terra de Santa Maria, isto é, o território de Entre Douro e Vouga, antes integrado no condado de Portucale. E será no Norte do Douro que Sisnando irá procurar as alianças familiares indispensáveis ao fortalecimento do seu poder, pois é lá que o cônsul de Coimbra, como se exibe na documentação da sua chancelaria, vai buscar a filha do último conde portucalense — Loba Nunes "Aurovelido" — com a qual contrairá matrimónio.
A personalidade de Sisnando Davides marcou indelevelmente a vida da cidade do Mondego, norteando-se o seu governo por uma política de independência e tolerância. Moçárabes, cristãos do Norte e muçulmanos conheceram em Coimbra, durante cerca de trinta anos, que tantos foram os de governo sisnandino, uma coexistência sem sobressaltos, que possibilitou um próspero intercâmbio cultural e comercial entre as comunidades de diferentes credos religiosos.
O bispo Paterno de Coimbra, que Sisnando foi buscar a território mourisco, trouxe consigo a cultura e as tradições árabes, notoriamente presentes na escola que o prelado dirige na Sé coimbrã, uma réplica das escolas teológicas que funcionavam anexas às mesquitas.
As influências mouriscas estão ainda presentes no estilo notarial adoptado pela chancelaria do conde Sisnando, cuja corte inclui muitas personagens com antropónimos árabes ou arabizados. Assaz mais determinante para o futuro de Portugal, o facto de Sisnando trazer consigo os costumes e regulamentos das cidades do Sul, as tradições de autogoverno, milícias e magistraturas municipais, presentes na génese dos nossos primeiros concelhos.
Se nenhum destes factores pode ser considerado decisivo para a formação de Portugal, não há dúvida que contribuíram, com a sua quota parte, para a definição da individualidade do nosso território.
A Sisnando irão suceder os franceses Raimundo e Henrique, este último governando do Minho ao Tejo. Os francos trazem consigo a Ordem de Cluny, que pretende unificar culturalmente a terra cristã peninsular, impondo os seus pontos de vista e os ritos romanos. A reacção do centro do condado vai ser imediata e D. Henrique, se quer manter a orgulhosa Coimbra, terá de fazer várias concessões à sua população, bem patentes no foral que lhe outorgou em 1111.
Afonso Henriques, no seu caminhar para sul, parece reconhecer as virtualidades de Coimbra, cidade que foi cadinho onde se caldearam culturas e afirmaram forças municipalistas. O nosso primeiro rei escolherá Coimbra para centro do seu governo, certamente por lhe reconhecer as qualidades que permitirão a construção da ponte que unirá a cultura do norte à cultura do sul, a cultura neogoda e franco-cluniacense à cultura moçárabe.
O centro do País respondeu aos anseios do primeiro Afonso de Portugal. A atestá-lo temos a rápida implantação das fronteiras definitivas de Portugal (no século XIII, no reinado de Afonso III), e o desenvolvimento do espírito nacional que, nos alvores de Aljubarrota, se espalha do Algarve ao Minho.

Mesmo recusando a tese do ermamento total, não podemos duvidar da grande movimentação de gentes que terá ocorrido no Noroeste da Península, entre os séculos VIII e XII, na sequência das acções militares promovidas pelas forças cristãs (neogodas) e pelas armas muçulmanas. A situação de guerra permanente terá contribuído para a afirmação da unidade cultural das forças cristãs, que recorrem a diferentes instrumentos para aprofundar e vincar a sua singularidade, que passará por um novo sentimento nacional estribado na assunção da herança do reino visigodo. É neste contexto que assistimos a uma verdadeira avalancha de antroponímia germânica, um "modismo" que sobressai na documentação desta época, com especial presença na toponímia local, na sequência das presúrias (ver glossário da postagem anterior), doações e compra e venda de propriedades, ligadas à estruturação de novos domínios laicos e religiosos, estes últimos em torno de sés, mas principalmente de um número crescente de mosteiros.
A este contributo teremos de juntar, talvez com o mesmo peso e importância, a acção das comunidades moçárabes de entre Douro e Mondego, e outras provenientes de territórios situados mais a Sul, grupos que arribaram a Norte durante o governo sisnandino, num movimento que se intensificou nos anos seguintes, quando os chefes francos e a Ordem de Cluny trouxeram para a Península o espírito de cruzada, transformando a Reconquista numa guerra religiosa, até aí inexistente. Foram estes moçárabes os responsáveis pela entrada no território cristão de uma numerosa antroponímia de origem hispano-árabe, que também encontramos presente na toponímia de entre Douro e Minho e mesmo da Galiza, ainda que com muito menor incidência.

Mas importa vincar que não podemos confundir germanismo onomástico com germanismo étnico, nem moçarabismo onomástico com etnia arábica. Bastará atentar no nome do cônsul de Coimbra, Sisnando Davides: um hispano-romano, moçárabe, com nome germânico (Sisnando) e patronímico judaico (Davides = filho de David).

Chegados ao século IX, podemos afirmar que os godos já tinham perdido o seu idioma e, como é óbvio, toda a importância que lhes advinha da proeminência política que os isolara da sociedade hispano-romana. Por esta época estavam definitivamente diluídos na comunidade hispânica cristã, tendo sido esta comunidade, no seu todo, a responsável pela germanização do onomástico peninsular. Se bem interpretamos esta realidade, o fenómeno em questão correspondeu a um dos caboucos de um novo imaginário, fundador de uma nova ideologia, capaz de cimentar social e politicamente o grupo humano que pretendia opor-se ao emirato, depois califado, de Córdova.
Quanto aos moçárabes, não passavam de hispano-romanos, cristãos, a viver em regiões controladas pelos muçulmanos, quase sempre bilingues, falando romanço e hispano-árabe, e partilhando das duas culturas que, por estes tempos, marcavam o mapa da Hispânia. À semelhança dos hispano-romanos, que adoptaram o germanismo onomástico sem por isso serem germânicos, também não foi por abraçarem um onomástico hispano-árabe que os moçárabes se transformaram em árabes ou muçulmanos.
A realidade política e religiosa do século XII, com as novas nacionalidades e a uniformização litúrgica, conseguida à custa da perseguição das especificidades e ritos locais, irá pôr fim ao onomástico germânico, substituído, paulatinamente pelos nomes latino-cristãos dos santos.

Também o romance ganhará novo fôlego no Noroeste Peninsular, fundamentalmente ao longo da Reconquista, num processo a que não será estranha a colonização galega e de entre Douro e Minho, que desce às regiões do Vouga e do Mondego na esteira de um vasto conjunto de próceres e presores, muitos dos quais aqui se estabelecem, como foi o caso dos representantes da chamada casa de Marnel.
Em conclusão, é legítimo afirmar que o romance se desenvolveu no Noroeste da Península, invadindo os meios rurais, principalmente a partir do século V, quando o convívio de diferentes adstratos se foi precipitando numa língua comum, construída a partir do latim popular. Daqui nascerá o galaico-português, quando o Noroeste começa a voltar costas ao centro leonês, ainda mais longínquo quando se desloca para Toledo, procurando o seu próprio caminho político, capaz de aprofundar os caboucos de uma cultura secular, plena de especificidades. Os que do Sul subiram a Norte, e nele se fundiram, ajudarão, por sua vez, o Norte a descer ao Sul. E desse encontro, e dessa cultura, teria que sair uma língua diferente, capaz de exprimir o canto dessa mesma diferença.

Bibliografia:
COELHO, António Borges (1973) — Comunas ou concelhos. 1ª ed. Lisboa: Prelo Editora. 218 p. (Cadernos de Hoje; n.º 13).
PIEL, Joseph-Maria (1989) — Estudos de linguística histórica galego-portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. 282 p. (Estudos Gerais / Série Universitária).
RIBEIRO, Orlando (1979) — PORTUGAL, Formação de. in SERRÃO, Joel, dir. — Dicionário de História de Portugal. Reed. Porto: Iniciativas Editoriais. vol. 5, p. 130-149.

2 comentários:

Hugo da Nóbrega Dias disse...

Três achegas:

1 - Discordo da rotulagem "franceses" que aplicou a Raimundo e a Henrique. à época o conceito de nação francesa não existia e o que havia naquela parte da actual frança era a herança do Reino de Tolosa, reino Visigótico. Tratar-se-iam de visigodos, portanto, e não de "franceses". O que os resistentes visigodos fizeram, foi chamar os seus primos do outro lado dos Pirinéus.

2 - A avaliar pelas suas declarações e conclusões, os germânicos muito simplesmente deixaram de existir, bem como os árabes. O que prevaleceram foram os hispano-romanos. Não sei bem o que quer dizer com isso de hispano-romanos, mas parece-me estranho usar o adjectivo romano, sendo os romanos um povo que apenas dominou militarmente, passando, no entanto, a ideia de que os germanos e os árabes não tiveram influência e não fizeram ou fazem parte da constituição genética da população. O mesmo acontece com os árabes. No seu entender parece-me haver uma ideia que o que prevaleceram foram os povos que cá habitavam antes da chegada dos germânicos: autóctones e romanos.

3 - Não percebo porque afirma "colonização galega e de entre Douro e Minho" das regiões do Vouga e do Mondego. Será preconceito afirmar colonização galega? Se não havia ainda identidade portuguesa, porquê fazer distinção se à época não havia esse tipo de diferenciação por não existir identidade nacional. A identidade nacional não seria a galega, a do mesmo povo, com os mesmos costumes, que falava a mesma língua? Será correcto ver o ontem com os olhos de hoje?

Não tome isto como um ataque a si e ao seu blog, apenas uma troca de ideias.

Cumprimentos.

Manuel Carvalho disse...

Caro Sam
Discutir ideias e factos não é atacar ninguém e não terá sido por acaso que chegámos ao errare humanum est.. Por isso agradeço as suas achegas, que permitem clarificar o que pretendi dizer nesta minha postagem.

1 – No século XI não há Visigodos em parte nenhuma da Europa. Desapareceram amalgamados em novas realidades culturais, em que, naturalmente, participaram e deixaram, mais ou menos visível, a sua marca. O mesmo terá acontecido com os Suevos e, antes deles, com Italiotas, Lígures, Celtas, e tantos seriam que esgotaríamos a página. Mesmo no século VIII, quando falamos de neogodos, não falamos de Visigodos. O termo pertence à historiografia moderna, para rotular uma nova realidade, a que nenhum apelativo anterior responde. Lembro-lhe que os Visigodos, à sua entrada na Hispânia, não seriam mais de 150.000, enquanto a população hispano-romana andaria algures entre os 7 e os 12 milhões de indivíduos. Acresce o facto de terem aqui entrado já fortemente romanizados, com uma chancelaria e leis que falavam latim. São exemplos o Codex Euricianus (c. 476), não só escrito em latim, mas também redigido por juristas romanos, o Breviarium Alaricianum ou Lex Romana Visigothorum (Alarico II, 506), destinado à população galo-romana e hispano-romana, e a Lex Visigothorum ou Liber Iudiciorum promulgada em 654 por Recesvindo e que passa a abranger o conjunto da população do reino. Foi a lei e a religião (arianismo versus catolicismo) que não permitiram que a miscigenação acontecesse mais precocemente.
Os Visigodos tinham começado a perder a Aquitânia desde 507, aquando da vitória do rei franco Clóvis sobre Alarico II. Toulouse ficará definitivamente perdida e os Visigodos apenas ficam com a Septimânia que, bordejando o Mediterrâneo, os une à Itália, não por mérito próprio, mas pela acção militar do ostrogodo Teodorico o Grande.
Quanto à noção de "nação francesa", no século XI, seria porventura idêntica à noção de "nação portuguesa" no século XIII. Na verdade, não é "correcto ver o ontem com os olhos de hoje". O reino dos Francos, inaugurado no século V por Clóvis, será mais o reino dos reis francos que o reino dos Francos. Por isso se dividia à morte do rei, dando lugar a tantos reinos quantos os filhos varões do falecido. Mas, analisada a realidade política e social desses tempos conturbados da medievalidade, e da lenta afirmação feudal geradora das grandes debilidades do poder central, a historiografia moderna reconhece unanimemente o nascimento da França na dinastia Carolíngia, não no seu primeiro rei, mas a partir de 843, data do Tratado de Verdun, em que os três netos de Carlos Magno dividem entre si o antigo império. Por isso aceita-se falar de reino de França a partir de 843, identificando-o com o reino da Frância Ocidental que coube ao rei Carlos, o Calvo (840-877).
Nesta perspectiva, Henrique e Raimundo são claramente franceses, da Casa da Borgonha, sujeita à casa real francesa. A Borgonha, territorialmente herdeira do antigo reino dos Burgúndios, estava nas mãos dos Francos desde 532-534. Henrique era irmão de dois duques de Borgonha (Hugo I e Eude I), neto de outro duque borgonhês (Roberto I), bisneto de Roberto II, rei de França, sobrinho-neto de S. Hugo, abade do mosteiro de Cluny, e sobrinho de Constança, a rainha de Leão e Castela, porque casada com o rei Afonso VI e, por este parentesco, primo direito de Urraca, a herdeira do trono leonês que viria a casar com Raimundo. Por último, Raimundo era filho do 4º conde de Borgonha, Guilherme I, que, por sua vez, era irmão da mãe de Henrique, o que os transformava também em primos.

2 – Na resposta anterior já aflorei parte das problemáticas aqui levantadas. Como atrás se disse, os Visigodos já utilizavam o adjectivo "romano" para se referirem à realidade cultural da Hispânia que eles dominaram, sabendo que não estavam a lidar com Romanos de Roma ou da Itália. Se se referissem ao Nordeste basco, certamente o discurso seria outro. Lex Romana Visigothorum, isto é, a lei que os Visigodos dão às populações romanizadas, às populações aculturadas pela acção de uma vasta panóplia de mecanismos criados pelo Império Romano, fosse ou não deliberadamente.
Os Romanos não se limitaram a dominar militarmente a Península Ibérica. Foram muito mais longe. A afirmação, se tem cabimento, será por inteiro em relação aos povos germânicos. Roma trouxe a língua, o direito, as instituições político-administrativas, a religião (a pagã e a cristã), o urbanismo, novas técnicas de mineração, novas indústrias, uma nova agricultura, a ideia de mercado, novas formas de comércio, infra-estruturas portuárias e rodoviárias, e uma economia virada para os centros urbanos. Nada disto pode ser atribuído aos germanos que, neste campo, seguiram as pisadas dos hispânicos: romanizaram-se ao ponto de também perderem a seu próprio idioma.
De certa maneira, a influência de uma cultura sobre outra terá de reflectir-se no idioma da segunda. Também aqui é perceptível o reduzido contributo germânico, que nos deixou apenas uma mão cheia de novos vocábulos, em grande parte relacionados com a guerra, e que terá limitado a sua influência ao funcionamento de uma ou outra instituição, nomeadamente na adaptação do direito romano e germânico aos novos tempos.
Já os Árabes tiveram uma influência muito mais marcante em toda a Hispânia, levando mesmo ao bilinguismo no al-Andaluz. É também extraordinário o contributo árabe para o léxico do português (menor no galego), espanhol e catalão, para a literatura e ciência, para a agricultura, artesanato, construção civil, urbanismo e diferentes tipos de infra-estruturas. Mas não podemos esquecer que este contributo aconteceu sobretudo através dos moçárabes, pois a religião não permitiu qualquer tipo de miscigenação.
O sangue árabe terá entrado muito pouco no homem ibérico, mas outro tanto não deverá ter ocorrido com os berberes, muitos dos quais se converteram e por cá ficaram. Mas, se os árabes não deixaram o sangue, deixaram a sua cultura superior, bastando analisar o tipo de vocabulário aqui deixado e o sentido da maior parte dos topónimos com origem hispano-árabe.

3 – Quando falo da "colonização galega e de entre Douro e Minho" não pretendo identificar qualquer diferença étnica ou linguística (que não existia), referindo-me antes a realidades geográficas e políticas. Não esqueçamos que entre Douro e Minho já tinha nascido o condado portucalense, que foi ganhando autonomia entre os séculos IX-XI, de tal forma que chegou a haver reis de Portucale. Com efeito, depois da morte de Fruela II, Sancho Ordonhes será rei da Galiza entre 925 e 931, ao mesmo tempo que Ramiro II será rei de Portucale durante o mesmo período, antes de ser rei de Leão de 931 a 951. Mais tarde, dois anos antes da morte de Ramiro III, também Bermudo II será rei de Portucale de 982 a 984, antes de se transformar em rei de Leão (984-999). Talvez por isso Fernando I, depois de unificar os reinos cristãos, tire o poder aos condes portucalenses, para evitar pretensões independentistas, que nem por isso deixarão de vingar no século seguinte, apesar da passagem do seu filho Garcia pelo reino da Galiza (agora integrando Portucale) entre 1065 e 1073.

Espero ter aclarado a postagem criticada, mas é muito difícil sermos completos em trabalhos deste tipo. Agradecendo a sua colaboração, permita-me um abraço bloguista do
Manuel Carvalho