quinta-feira, 26 de março de 2009

Mário Sacramento morreu há 40 anos


MÁRIO SACRAMENTO (1920-1969) morreu há 40 anos, sem ver o Portugal livre por que tanto combatera. Médico, escritor, crítico literário, político empenhado e cidadão de corpo inteiro, a morte, pressentida, levou-o cinco anos antes do 25 de Abril, nas vésperas do 2º Congresso da Oposição Democrática, que o homenageou deixando vaga a sua cadeira na mesa da presidência. Em humilde homenagem, deixamos aqui a sua carta-testamento.

Caramulo,
Pousada de S. Lourenço,
7 de Abril de 1967

Aos mais adiados...

Vai sendo tempo de escrever uma carta de despedida! A velha carcaça é já uma ruína nítida. A somar às cicatrizes das lesões pulmonares que tive, há bronquiectasias e zonas de enfisema do impossível fumador que sou, as quais hão-de vir a resultar num coração pulmonar. A tensão mínima já começa a ressentir-se disso. O rim deita vestígios acentuados de albumina e cilindros. E o estômago tem qualquer coisa que um destes dias hei-de averiguar... Como não posso nem devo emagrecer excessivamente — são os próprios colegas que mo dizem —, dado o perigo de reactivação das antigas lesões bacilares, o peso é também um contra. E, como deixar de fumar, nesta idade, além de ser um sacrifício inglório que me roubaria um dos poucos apegos concretos que ainda tenho à vida, seria levar-me a engordar ainda mais, o balanço é portanto muito nítido. Quantos anos? Depois dos cinquenta acaba-se, estou convencido. Mais erro, menos erro, a média deve ser essa.

Começo por isso a ter pressa de fazer umas tantas coisas que reservei para a fase final, quando a terrível batalha que travei na sobrevivência contra o fascismo me deixasse, à margem desta profissão cujas dificuldades e condicionamentos económicos, sociais e políticos liquidaram tantos dos meus sonhos, margem para isso. Espero roubar, sempre que possa, alguns dias à labuta e à engrenagem diária e isolar-me, como agora fiz, para escrever qualquer coisa de mais íntimo. Para o romance cíclico que trago há tantos anos na cabeça, não chegará o tempo, decerto. E é melhor assim, pois evito uma desilusão e sempre morrerei com o arzinho angustiado de vítima dum mau destino, o que é chique, como diria o Eça...

Antes de tudo, impõe-se, porém, que escreva estas singelas palavras. Quem pode afiançar-me que não vou acabar hemiplégico e afásico, como minha Mãe? Deixa aqui, então, o que depois não poderás!

Deixar cheira a testamento. E eu, que deixe, só tenho o corpo. Por mais que fizesse, por mais que me fizessem, disso é que nunca consegui ser espoliado! E, como é com ele que me avenho nas noites de insónia e nas porfias diárias, é justo que lhe dedique, ao menos, um pensamento em vida. E não o legue aos cães... Pois não equivaleria a isso estar a ver-me, daqui, de barba feita a posteriori, sapatos engraxa¬dos, fato de ver a Deus, a apresentar as minhas despedidas, muito formalizado, de dentro da cabine — espacial? Como não tenciono ir para parte nenhuma, metam-me como eu estiver no caixote mais barato que encontrem e devolvam-me os restos à terra. A terra sabe lavar-se. E não há nada como um cadáver «limpo» para marcar um limite.

Se morresse em localidade com forno crematório, não desgostava disso, se não fosse caro. E, por falar em caro: não sei se a terra será o mais barato para o caso, — ó contradições do capitalismo! E, como isto de morrer também «custa» aos outros, há que prevê-lo. A família tem uma pirâmide egípcia em Ílhavo. Embora eu esteja farto de conhecer prisões em vida, como nessa altura quem terá de aguentar isso é «o outro», não me oponho a ir para lá, se for mais económico ou mais fácil de arrumar. Não faço questões nenhumas com a morte... Ela nega-me, e é tudo. A grande magana!

Não, o motivo fundamental desta carta é outro. Aceitei dialogar, nestes últimos tempos, com os católicos. Se tivesse nascido num país protestante ou árabe ou budista, tê-lo-ia feito com esses. Pois do que se tratava — se trata, ó morto-vivo!, ainda não acabaste! — era, é de dialogar com os progressistas e, sobretudo, com o povo, directa ou indirectamente. Não há-de faltar contudo — sempre assim foi, ó alminhas santas! — quem procure fazer sujeira com isso e aproveitar-se duma ambiguidade que surja para me denegrir a memória. Se a minha Mulher ainda estiver viva — ela tem sido boa companheira! — não haverá problemas com isso, estou convencido. E o mesmo se dará se os filhos estiverem atentos: eles têm carácter. Mas quem pode prever tudo? Não que eu faça grande questão do meu bom-nome: estou-me nas tintas para ele, depois de morto. Mas, além dele pertencer, também, aos filhos dos Filhos e a estes, pertence aos meus companheiros de jornada. E, que diabo, se passei tantos maus bocados por eles, em vida, é porque considerei que era esse o meu destino. E um homem tem o direito de o defender, mesmo depois de morto!

Fica portanto entendido que sou ateu e como ateu devo ser enterrado. Em vez dum pano preto, ponham um paninho vermelho no caixote, se puderem. E usem luto vermelho, se algum quiserem usar...

Mesmo que eu ficasse pílulas ou sugestionável à hora da morte, isso não modificaria ser esta a minha opinião responsável. É esta, por conseguinte, a única válida.

Claro está que gostaria de ter sido melhor homem, melhor marido e melhor pai. A perspectiva da morte só tem de positivo fazer-nos pensar assim. Mas o homem é um bicho complicado. E eu tenho a consciência de que, pelo menos, me bati sempre comigo mesmo para ser melhor do que poderia ter sido. Fui amigo da família à minha maneira: sem efusões líricas ou rodriguinhos. E, se não fiz mais por ela, foi porque não pude, tanto no sentido social como psicológico do verbo. A prova de que o meu desejo era ser bom marido e bom pai está no muito que li, pensei e escrevi sobre isso. Sejam os Filhos melhores do que eu pude — foi sempre esse o meu sentido de missão.

Nasci e vivi num mundo de inferno. Há dezenas de anos que sofro, na minha carne e no meu espírito o fascismo. Recebi dele perseguições de toda a ordem — físicas, económicas, profissionais, intelectuais, morais. Mas, que não as tivesse sofrido, o meu dever era combatê-lo. O fascismo é o fim da pré-história do homem. E procede, por isso, como um gangster encurralado. Fiz o que pude para me libertar, e aos outros, dele. É essa a única herança que deixo aos meus Filhos e aos meus Companheiros. Acabem a obra! Derrubem o fascismo, se nós não o pudermos fazer antesl Instaurem uma sociedade humana! Promovam o socialismo, mas promovam-no cientificamente, sem dogmatismos sectários, sem radicalismos pequeno-burgueses! Aprendam com os erros do passado. E lembrem-se de que nós, os mortos, iremos, nisso, ao vosso lado!

Não veremos o que quisemos, mas quisemos o que vimos. E este querer é um imperativo histórico. Há milhões de mortos a dizer-vos: avante!

Para a Mulher, um abraço, simples e esquivo como eu sempre fui. Para os Filhos, um beijo, frio e recalcado como eu sempre lhes dei. Para todos, um afecto. Quem tinha tão pouco que dar a tantos, teve de ser avaro... Mas morre convencido de que não guardou nada para si. Ou de que teve, pelo menos, essa intenção.

Façam o mundo melhor, ouviram? Não me obriguem a voltar cá!

Mário Sacramento

[– Carta-testamento. Porto: Editorial Inova, 1973. p. 15-18]

sábado, 14 de março de 2009

Monte da Paradaia (Romãs, Sátão)

Pede-me um leitor deste blogue para estudar a possível origem do topónimo Paradaia, que identifica um monte na freguesia de Romãs, concelho de Sátão. O topónimo em questão é ignorado pelos nossos documentos oficiais que, para o mesmo acidente geográfico, registam os nomes de Monte do Barrocal ou Monte de Nossa Senhora do Barrocal. Acrescenta o nosso consulente que, neste lugar, estão referenciados «uma necrópole, um castro e uma igreja moçárabe».

Uma rápida pesquisa permitiu-me acrescentar algo mais a estas informações, como seja o facto de ali se realizar, no dia 2 de Fevereiro de cada ano, a romaria de Nossa Senhora do Barrocal, em honra de Nossa Senhora das Candeias, orago da capela ali existente, a que o povo chama Capela das Candeias ou da Fevereirinha.

Esta romaria corresponderá, quase pela certa, considerando as particularidades do lugar e os respectivos achados, à cristianização do festival celta do primeiro dia de Fevereiro, conhecido por Imbolc "Purificação" ou Dia da Senhora, que honrava a deusa Brigitt, «filha do deus Dagda, a deusa tripla dos cabelos de ouro. Era a mãe, a filha e a esposa dos deuses das origens e dos primeiros druidas. Personificava a poesia, a saúde, a força, a adivinhação, a inteligência e protegia o lar». O processo da cristianização, perante a dificuldade em erradicar as múltiplas manifestações da religião e dos costumes pagãos, transformou esta deusa Brígida em Santa Brígida, arvoradando-a em padroeira da Irlanda, com culto generalizado nesse mesmo dia 1 de Fevereiro.

A ocupação romana trouxe consigo um pouco de todo o império, incluindo, como não podia deixar de ser, a sua religião, abrindo caminho a novos sincretismos.

Neste mesmo mês de Fevereiro, entre os dias 13 e 21, a velha Roma promovia um dos seus maiores festivais religiosos, que pretendia honrar os mortos e aproximar os membros da família, envolvidos na visita aos túmulos dos seus familiares, onde levavam flores e oferendas de sal e de pão embebido em vinho.

Considerando as características do Monte da Paradaia e a existência ali de uma necrópole, pensamos ter encontrado a resposta para a origem deste topónimo no festival religioso a que acabámos de aludir. A legitimação desta hipótese, que até o nome da freguesia parece confirmar, deixamo-la a cargo de quem melhor a pode fazer: a Arqueologia.

Parentalia, era o nome deste festival, e daqui podia derivar o nome Paradaia, mediante fenómenos fonéticos presentes na formação da língua portuguesa:

Parentalia >

> *parantalia (assimilação da segunda sílaba por influência das envolventes);

> *paratalia (assimilação progressiva da segunda sílaba por desnasalação);

> *paradalia (por sonorização do intervocálico -t- > -d-);

> Paradaia (por síncope do -l- intervocálico).