terça-feira, 27 de maio de 2008

JAIME DE MAGALHÃES LIMA 1859-1936 (biografia)

Jaime de Magalhães Lima foi daquelas personagens de multímoda mundividência que, pela extrema e variada riqueza interior, escapa a qualquer tentativa de arrumação em cacifo ideológico padronizado. Tocado por uma miríade de influências, cujas raízes mergulham no cristianismo de S. Francisco de Assis e nas doutrinas de Leão Tolstoi, passando pelo movimento Arts and Crafts de William Morris e John Ruskin1 e pela comunhão de ideais com alguns dos grandes vultos das nossas gerações oitocentistas, de que cumpre destacar Antero de Quental e Oliveira Martins, não deixou por isso de construir o seu próprio caminho, calcetando-o com um apurado sentido crí­tico e, sobretudo, com muita lucidez e tolerância, milímodas cumplicidades e um inco­mensurável respeito pelo Outro.

Filho de Sebastião de Carvalho Lima e de D. Leocádia Rodrigues de Magalhães, nasceu em Aveiro a 15 de Outubro de 1859, no palacete que seu pai mandara construir sobre as ruínas do Convento do Carmo, adquiridas em 1856 a Manuel José Mendes Leite, o fiel e eterno companheiro de José Estêvão e autor da iniciativa legislativa que terminou com a pena de morte para os crimes políticos (1852), gesto pioneiro a nível europeu. Nesse mesmo ano, o seu irmão Sebastião de Magalhães Lima, cujo percurso intelectual e político seria bem diferente, saía de Aveiro para frequentar o colégio alemão Roeder.

As questões políticas estariam quase sempre presentes no ambiente familiar da sua infância, pois o pai, para além de deputado, foi presidente da Câmara de Aveiro e da Junta Geral do Distrito, representando, na cidade dos canais, as cores do Partido Histórico, facção política surgida no início da Regeneração sob a liderança do duque de Loulé.

Tendo feito os preparatórios para os estudos superiores no Colégio Aveirense, iniciou o seu curso de Direito, na Universidade de Coimbra, no ano em que sua mãe falecia na residência da Rua do Carmo. Tinha dezasseis anos.

Frequentando a Universidade entre 1875 e 1880, será aqui influenciado pelo pensamento de Karl Krause, filósofo do Direito e discípulo de Schelling e de Fi­chte. O krau­sismo, cujos prosélitos conimbricenses foram sobretudo Costa Lobo, Rodrigues de Brito e Emídio Garcia, estará por detrás da concepção organicista da realidade social, comungada por Jaime Lima e presente no seu modelo de representação política. As ideias de Krause encontraram campo propício entre os críticos do individualismo liberal, muitos deles também liberais, mas que viam com mágoa e inquietação a facilidade com que se destruíam os equilíbrios da sociedade tradicional e os seus esteios axiológicos, como acontecia com Costa Lobo que, já em 1864, na sua tese de doutoramento, avançava para soluções corporativistas, apresentando a sociedade "como verdadeiro organismo […com] seus membros reciprocamente dependentes". Ao longo da segunda metade de Oitocentos o krausismo influenciará ainda muitos dos alunos da Faculdade de Direito de Coimbra, mercê dos magistérios de Rodrigues de Brito e Emídio Garcia.

A profunda amizade que une Jaime de Magalhães Lima a Luís de Magalhães, filho de José Estêvão, seu condiscípulo em Coimbra e futuro cunhado, relaciona-o com importantes nomes da Geração de 70 e com outras personalidades do meio cultural nortenho. Luís de Magalhães residia na quinta do Mosteiro, em Moreira da Maia, numa época em que Oliveira Martins se fixara no Porto, às Águas Férreas. Não muito longe, em Vila do Conde, demorava Antero de Quental e, um pouco mais além, na Quinta de Boamense, em Cabeçudos, nas proximidades de Famalicão, vivia Alberto Sampaio. Nas tertúlias do Porto, em Santo Ovídio, na casa de Oliveira Martins, na Quinta do Mosteiro2, na tebaida de Vila do Conde ou em Boamense, juntavam-se com frequência Luís de Magalhães, Jaime Lima, Antero de Quental, Oliveira Martins, Guerra Junqueiro, Ramalho Ortigão, Alberto Sampaio, António Feijó e tantos outros, residentes no Norte do país ou simplesmente por ali passando de visita.

Jaime Lima ficará indelevelmente ligado a muitos destes homens, com destaque para Antero, cujo idealismo e afinidades intelectuais propiciaram uma maior aproximação, por demais evidente na correspondência trocada e no tratamento familiar que adoptaram entre si, deixando "as excelências para aqueles com quem não temos outra comunhão senão a de pertencermos à mesma sociedade em geral — muito geral 3".

Em Coimbra, o convívio e as leituras trazem-lhe as primeiras hesitações religiosas, que igualmente tocarão o seu amigo Luís de Magalhães. Isso mesmo parece transparecer do poema publicado aos 64 anos, assomo de prestação de contas e prenunciação de uma partida que o destino marcou para cerca de treze anos depois:

[…]
Os anos de inocência e os da paixão;
os de orgulho sombrio e os da humildade;
os da fé;
e também esses, funestos, tenebrosos,
da Descrença e da Dúvida;
[…] 4

O teor de uma carta de Antero de Quental, datada de finais de 1886, dá-nos conta da superação desta crise, correspondendo, talvez, às primeiras aproximações de Magalhães Lima a S. Francisco de Assis e a Tolstoi:

Tudo isto, meu caro Magalhães Lima, veio, não sei bem como, para lhe dizer uma cousa muito simples, e é o que mais me alegrou na sua carta foi o dizer-me que começava a sentir, nestes últimos tempos, um renascimento dos antigos sentimentos religiosos, embora transformados, e uma invencível necessidade de idealismo.5

Um ano antes, em 1885, tinha sido publicada a tradução francesa da Religião de Leão Tolstoi que, como o próprio Jaime Lima confessa ao autor, apenas leu depois da visita que lhe fez, mas a influência tolstoiana já se fazia sentir através da leitura de outras das suas obras:

Li a sua "Religião" e voltarei a ler brevemente todas as suas obras traduzidas em francês. Ela (a "Religião") causou-me uma impressão tão profunda que resolvi dedicar-lhe um estudo que deverá ser publicado no próximo verão. […] Não estamos de acordo em muitos pontos, mas devo confessar-lhe que, há já bastante tempo, muitas vezes com a ajuda dos seus livros, me sinto voltar à religião e à humildade. É possível que as vicissitudes da minha vida tenham contribuído muito para isso; sempre estou convencido de que a vida não tem outra finalidade senão a virtude, e cada dia sinto mais sincero e profundo arrependimento das minhas faltas e dou a maior parte dos meus pensamentos ao amor de Deus.6

Por esta época, quando dobrava o quarto de século e a Europa estrebuchava de nacionalismos e imperialismos, com a Conferência Internacional de Berlim (1884) a traçar os primeiros contornos do domínio europeu em África, Jaime Lima inicia uma prolixa produção literária, através da qual procura intervir na sociedade portuguesa, ou simplesmente exercer um magistério democrático de divulgação das ideias que, colhidas aqui e ali, lhe parecem merecedoras de partilha. Esta ânsia de comunicar exprime-se em cerca de novecentos títulos, distribuídos por dezenas de jornais e revistas, trinta livros, quatro traduções-adaptações e vinte opúsculos de outras tantas conferências. Uma parte importante da sua colaboração em publicações periódicas terá o destino da produção literária de John Ruskin: a compilação posterior em pequenos volumes, porque,

para serem companheiros do coração, os livros hão-de ocultar-se, como tudo o que é amado do coração; irão connosco, unidos ao corpo, sem que olhares profanos os insultem com escárnio ou indiferença. […] Por isso, eu quero aos livros bons e pequeninos, como às violetas do meu jardim.7

A Província, órgão do Partido Progressista fundado no Porto por Oliveira Martins, será o primeiro jornal a acolher colaboração continuada de Jaime Lima, que se estende por alguns anos. São artigos literários, sobre autores nacionais e estrangeiros, peças versando temas agrícolas, mas também aparecem os assuntos de cariz económico e social ou de política nacional e internacional, muitos deles a propósito de obras publicadas em diferentes países da Europa.

Em 1888, quase a completar os 29 anos, durante os meses de Setembro e Outubro, faz uma grande viagem pela Europa, regressando pelo norte de África e sul de Espanha. Nesta longa peregrinação, cujo diário vai publicando no periódico de Oliveira Martins, visita Leão Tolstoi, na sua residência de Iasnaia Poliana, fortalecendo os vínculos que, desde há algum tempo, o prendiam ao pensamento do grande escritor russo. No regresso escreve a Tolstoi e carteia-se com Antero, comentando com o amigo as impressões recolhidas nas entrevistas que manteve com o autor de Guerra e Paz.

O cristianismo democrático e filantrópico de Tolstoi ajustava-se às preocupações sociais das elites intelectuais da época, o que explica o impacto do "santo laico" em toda a Europa e particularmente em França, país que visitou e onde tocou fundo a sua adesão às doutrinas de Proudhon. Jaime Lima contactou a obra de Tolstoi a partir do livro Le roman russe de Eugène-Melchior de Vogüé e das traduções francesas que se multiplicavam no último quartel de Oitocentos.

Esta longa deambulação pela Europa e a visita a Tolstoi parecem culminar uma fase importante da sua vida, à procura de um caminho e de decisões para o futuro. Regressado a Portugal anuncia a Antero de Quental o seu próximo casamento, que terá lugar em Condeixa. Jaime de Magalhães Lima casou em 23 de Julho de 1889 com D. Maria do Cardal de Lemos Pereira de Lacerda, filha de Francisco de Lemos Ramalho de Azeredo Coutinho, morgado da Casa de Condeixa, e irmã de D. Maria da Conceição de Lemos Pereira de Lacerda, casada desde Fevereiro de 1884 com Luís Coelho de Magalhães. Um pouco antes, em carta datada de 28 de Maio, Antero manifestava-lhe o seu regozijo:

Já me tardava vê-lo casado — e posso dizer-lhe agora que mais de uma vez tinha pensado nisso, e sentido até a tentação de lhe dar esse conselho; mas achava a matéria tão delicada, tão absolutamente do foro íntimo, que nunca me atrevi. Veja pois com que prazer recebi a notícia, que me dá! O dia do seu casamento será para mim um de verdadeira alegria. Não lhe citarei o famoso "não é bom que o homem esteja só" da Bíblia, ainda que há uma grande verdade nesse conceito; mas, tomando a coisa por outro lado, dir-lhe-ei que só é verdadeiramente livre aquele que sabe limitar voluntariamente a sua liberdade […] Entrou, meu caro amigo, num caminho em que todos os dias irá sentir o chão mais firme debaixo dos pés, mais lúcido o pensamento, mais serena a consciência. Vivendo cada vez mais para os outros, sentindo morrer em cada dia dentro de si mais uma parcela do eu egoísta que tanto nos ilude, tanto nos faz sofrer e errar, irá entrando gradualmente naquela região da impersonalidade que é a verdadeira beatitude.8

Os acontecimentos de 1890, e a forma como Portugal respondeu ao Ultimato inglês, desencadearam, um pouco por todo o país, um coro de lamentos e assuadas, quando não ferozes manifestações de nacionalismo ofendido. Republicanos e socialistas zurziram a instituição monárquica, enquanto a agressividade da imprensa, que nem a nova "lei da rolha" conseguia calar, e a denúncia da dependência económica e política de Portugal face à Inglaterra despertavam sentimentos anti-ingleses e faziam cair governo atrás de governo.

Jaime de Magalhães Lima acabará por entrar na política activa, já depois da recusa ao grito desesperado de Antero, que o pretendia no Porto como secretário-geral da Liga Patriótica do Norte a que presidia:

O Jaime é o homem, é o único. Há-de vir. O que se vai passar em Portugal é seriíssimo. Faça cada um o seu sacrifício no altar da Pátria. Eu sacrifico a minha saúde, que naufragará de todo no meio disto, e muito provavelmente o meu nome, que antes de 6 meses estará manchado. […] O Jaime fará também à Pátria e ao Bem o seu sacrifício. Venha.9

O malogro da iniciativa, que tentava uma ampla frente, suprapartidária, capaz de salvar a Pátria da decadência e da crise permanente em que vivia, aplicando um vasto programa que recuava ao diagnóstico da "Geração Nova" e das Conferências democráticas do Casino Lisbonense, terá contribuído para o desânimo de Antero e para o agravamento da misantropia que o conduziria ao suicídio, em 11 de Setembro de 1891. Jaime Lima, apesar de ter recusado o cargo de secretário-geral da Liga, lugar que foi preenchido pelo Conde de Resende, aderiu ao projecto e disso deu público testemunho na primeira página d’ A Província de 3 de Março de 1890.

Recém-casado, o escritor aveirense remete-se à vida familiar e ao estudo da obra de Tolstoi, reduzindo drasticamente, ao longo de alguns anos, a sua colaboração na imprensa. No entanto, é durante este período que o futuro "eremita" da quinta de S. Francisco se lança na política activa, começando por integrar, com Luís de Magalhães e Alberto Sampaio, o grupo dos chamados "governamentais", apoiantes do projecto "Vida Nova" corporalizado no pensamento e na pessoa de Oliveira Martins. O desiderato apontava para a salvação de Portugal e para a aplicação de um conjunto de medidas capazes de ultrapassar a bancarrota do Estado e a crise financeira, e estancar as falências que se sucediam em catadupa. Oliveira Martins conseguirá inverter esta tendência, durante os quatro meses em que sobraçou a pasta da Fazenda, mas o êxito não evitará a sua saída do governo e a consequente solidariedade dos amigos, que deixam de apoiar o Ministério de José Dias Ferreira.

A traição a Oliveira Martins custou a Dias Ferreira a chefia do governo, vingança cozinhada por alguns dos "governamentais" e consumada no regresso de um governo partidário regenerador, com Hintze Ribeiro na presidência e João Franco na pasta do Reino. Mas o Partido Regenerador não fugia à profunda desordem que campeava nos velhos partidos monárquicos, ele próprio com várias facções a digladiarem-se e com uma direcção bicéfala, em que pontificavam Hintze Ribeiro e João Franco, nem aos vícios arranjistas alimentados pelas benesses distribuídas em função dos acordos de caciques e chefes políticos.

Em 1892 Jaime Lima é eleito presidente da Câmara de Aveiro e, no ano se­guinte, deputado pelo Partido Regenerador, continuando, coerentemente, a defender as ideias de Oliveira Martins. Em 1894 perde mais este amigo e, dois anos depois, morre-lhe o pai. Novamente deputado por Aveiro, eleito em 1897, colabora na imprensa local e noutras publicações ligadas ao Partido Regenerador, apoiando, com Luís de Maga­lhães e Alberto Sampaio, as reformas franquistas da lei eleitoral, identificadas com os princípios do krausismo e da "representação orgânica" de Oliveira Martins, que ele próprio defendia desde há doze anos. Mas todas estas reformas foram caindo depois de 1896 e, no ano imediato, poucos meses depois da conquista do poder pelos pro­gressistas de José Luciano de Castro10, completava-se o desmantelamento de toda a estrutura eleitoral franquista.

Em 1901 acompanha João Franco na cisão do Partido Regenerador, passando a dirigir a estrutura aveirense do novo Partido Regenerador-Liberal. Contudo, por esta época, a organização local dos partidos continuava a ser quase inexistente, circunscrita a uma ou outra figura de projecção regional, o que lhe permitiu ler e escrever intensa­mente, apostando na divulgação de Ruskin, Channing, Wordsworth, Michelet ou S. Francisco de Assis, e multiplicando os artigos sobre o que foi uma das suas grandes paixões, a silvicultura teórica e experimental dos eucaliptos.

Com a queda do Franquismo, em 1908, afasta-se definitivamente da política e instala-se na Quinta do Vale do Suão, em Eixo, nos arredores de Aveiro, rebaptizada de Quinta de S. Francisco. Nesta opção pelo contacto permanente com a natureza, le­vada ao extremo de não permitir cortinados nas janelas do seu gabinete de trabalho, para poder ver as árvores e as aves, seguia duas das suas referências intelectuais mais queridas: Alexandre Herculano, afastado de Lisboa e recolhido em Vale de Lobos, e John Ruskin retirado na pequena quinta de Brantwood, perto de Coniston Lake.

Afastado da ribalta tumultuosa da vida política e usufruindo avidamente a mãe Natureza, iniciava aqui o último período da sua vida, sempre atento ao mundo exterior, ao qual descia vezes sem conta por exigência dos que queriam ouvir a sua voz res­peitada. Com efeito, ao longo deste período, sucedem-se as conferências e palestras sobre os mais variados assuntos e nos mais diversos locais. O refúgio de Eixo produz de imediato o seu primeiro S. Francisco de Assis11, leitura heterodoxa do catolicismo oficial que mereceria alguns reparos de D. João Evangelista de Lima Vidal, seu primo e bispo de Aveiro. O livro é acusado de inter­pretar a vida do Poverello à luz do protestantismo do hagiógrafo Paul Sabatier12 o que levará Jaime Lima a escrever um outro, publicado já depois da sua morte, em 1956.

Seguem-se duas traduções de Tolstoi e um estudo sobre Alexandre Hercula­no, acompanhados por uma pertinaz colaboração na imprensa, por onde perpassam os problemas de Portugal, da Europa e do Mundo. Devorador de livros e jornais, aprendeu o inglês como autodidacta, o que lhe permitiu o contacto com o mundo anglo-saxónico, recorrendo a um vasto leque de periódicos britânicos, fossem eles londrinos ou da imprensa regional13, mas também a um variado número de títulos publicados em Inglaterra, que encomendava e recebia no eremitério de Eixo.

Acompanhando com especial atenção a vida política da Alemanha, e atento ao crescendo do nacionalismo prussiano, quase adivinhou o eclodir da 1.ª Guerra Mundial. Crítico aceso do imperialismo alemão, acabará por rejeitar liminarmente o cesarismo bismarckiano e a política de alianças com a social-democracia marxista, responsabili­zados pela instabilidade política do velho continente:

Levou tempo a fazer e deu muito trabalho essa nova Alemanha. Para isso foi necessário arrasar, como alegremente se arrasou, até aos alicerces, aquela outra Alemanha gloriosa, dos tempos em que militarmente era vencida, a Ale­manha de Kant, de Lessing, de Goethe e de Beethoven, do tempo em que, toda impregnada de idealismo, de sabedoria, arte, ingenuidade, simplicidade e anseios de liberdade, tinha menos ciência de laboratório e mais ciência do co­ração, e não sabia mentir, intrigar, corromper e oprimir14.

Nos seus escritos sobre a guerra sobressai a admiração pela Grã-Bretanha e pelo seu papel civilizador, apresentados em contraponto da barbárie germânica e como paradigma das sociedades democráticas:

Se vemos um estupendo império, como o da Grã-Bretanha, englobando sob a mesma bandeira, irmãmente querida e amada, as raças mais diversas e as mais diversas aspirações, é porque para esse milagre político, sem precedente na história, se criou um povo em cujo génio, por uma arte que é maravilha de espontânea perfeição, se conciliam praticamente as maiores e desusadas li­berdades com a coincidência em uma unidade, para a qual provavelmente só se encontrará justificação na comunidade de amor à própria liberdade e no propósito íntimo de a manter e defender.15

Denunciada a guerra e equacionados os problemas da Europa, Jaime Lima en­trega-se de novo às grandes questões nacionais, procurando intervir na sociedade portuguesa com vista à sua transformação, à redescoberta dos seus valores e tradi­ções… da sua alma. Perdidos os velhos amigos da Geração de 70, encontrará novas cumplicidades, sem no entanto chegar à íntima comunhão experimentada com Antero ou Oliveira Martins. Portugal estava mudado, o que era por demais visível no cresci­mento de Lisboa e de outros centros urbanos, na transformação da paisagem, com a proliferação das chaminés de fumo a romperem aqui e ali, bem como no aumento de uma classe média de funcionários e profissões liberais. Os tempos eram outros e os homens também. Os intelectuais portugueses do primeiro terço do século XX procuravam, em desespero de causa pela pequenez do meio, o arrimo das capelinhas, mais interessados em dar visibilidade a cada um dos "grupinhos literários", como lhes chamava Jaime Cortesão, que em produzir obra de fundo. As revistas literárias, que se multiplicavam em Lisboa e no Porto, duravam o tempo da sua agressividade e das polémicas que sustentavam o mercado.

As ideias que germinavam em França, nas vésperas do primeiro conflito mundial, ameaçavam invadir Portugal, cujas elites intelectuais eram, desde há muito, francófilas. E fizeram-no, com António Sardinha e outros corifeus do Integralismo Lusitano. Aquilino Ribeiro, desde Paris, bem podia clamar, nas páginas d’ A Capital, contra o perigo da importação do bergsonismo e do ideário da Action Française, e para a necessidade de descobrirmos um caminho português para a democracia portuguesa. O tradicionalismo acabará por constituir um elo de ligação entre pensamentos e movimentos diferenciados que, a partir de determinada altura, apostam no rejuvenescimento da alma nacional e na afirmação da individualidade portuguesa. Aqui se encontrarão os últimos românticos, os integralistas, os saudosistas, lusitanistas e criacionistas da Renascença Portuguesa, os modernistas da revista Orpheu, os seareiros, os sebastianistas e tantas outras seitas da cultura lusa dos inícios do século, "ismos" que, alimentados por dissidências e trânsfugas, cresciam de costas voltadas para o pensamento político dominante e para a Universidade.

Jaime de Magalhães Lima, espírito sempre aberto e tolerante, não recusou a entrada nesta procela babilónica, preso que estava à vocação e missão proféticas de defesa dos valores, tradições, língua e arte portuguesas, cujos objectivos se prendiam, mais além, com a felicidade e a harmonia para a Pátria portuguesa:

Pudessem os deuses ouvir as minhas obstinadas e roucas orações e pelos seus eleitos mandassem aos homens, senão a felicidade e a paz que não são muito de esperar entre os clamores da psicologia e da história, ao menos uma transitória remissão das inquietações, uma pausa no sofrimento pela qual debalde vamos suspirando entre o copioso saber, forças inauditas e vastíssimas riquezas que a nossa era ostenta e a nossa jactância apregoa!… Tivesse eu a felicidade de pressentir, de longe que fosse, as bênçãos de um novo reino!… Isso em consciência me absolveria da impertinência dos zumbidos com que procuro atormentar os ouvidos estranhos.16

Concorre com os seus escritos, nalguns casos esporadicamente, para revistas de diferentes tendências, sejam elas a Atlântida, A Águia, Lusitânia, A Ilustração Moderna, Portucale, Ilustração ou a Seara Nova. Em 1918 é um dos co-fundadores da LAN – Liga de Acção Nacional, colaborando no respectivo órgão, a revista Pela Grei, cujo subtítulo, Revista para o Ressurgimento Nacional pela Formação e Intervenção de uma Opinião Pública Consciente, exprimia claramente os objectivos da associação17. Em 1923 integra o grupo de 40 fundadores da Revista dos Homens Livres, dinamizado pelos seareiros António Sérgio, Raul Proença e Jaime Cortesão, movidos pelo propósito de trazerem à sua causa intelectuais que não se revissem no projecto da Seara Nova. António Sardinha, que havia atacado a experiência de 1918, alcunhando-a de "anglo-saxonismo de importação", numa alusão às ideias de Reis Santos, adere agora a este grupo, com Pequito Rebelo, seu correligionário do Integralismo que o havia seguido na evolução anti-monárquica. A heterogeneidade do grupo estender-se-á igualmente a anarquistas, ex-franquistas, monárquicos conservadores e sebastianistas, mostrando quão forte era o mal-estar da intelectualidade portuguesa perante as realidades sociais e políticas do país. Jaime Lima desde há muito defendia esta unidade de acção, escrevendo, em 1905:

Que um punhado de crentes devotados guarde a tradição do povo e sua glória,— seu amor do trabalho, sua honradez, bondade resignada e paciência, desprendimento, austeridade,— e Portugal ressurgirá do aviltamento, como renascem a Irlanda, a Hungria, a Polónia e tantos outros povos oprimidos, ou pelos próprios erros e loucuras ou pela ambição cruel dos poderosos. Nunca uma só batalha se perdeu, quando foi combatida por justiça e nobreza.18

Quase panteísta, atrever-nos-íamos a dizer "panteísta-cristão", no êxtase que experimenta na adoração da natureza, percorre montes e vales, preferindo sentir a aspereza dos caminhos a percorrê-los sobre quatro rodas, ele que possui o primeiro automóvel de Aveiro:

Já não há caminhos, há transportes, qualquer coisa que se move na estrada mas parece desconhecê-la. Pelo menos, não deixa que os sentidos a conheçam. Viajar, nesta sujeição, não é calcar a terra, é repudiá-la19.

Estes gritos de amor à terra, plasma em que mergulha todo o seu pensamento e vida interior, são brados de cabouqueiro ecológico, de quem acredita

na terra, no seu poder de transposição paradisíaca, na felicidade e bem-aventurança que ela concede a quem a ama e serve, fielmente, em louvor e culto e humildade.20

A religião é, em Jaime de Magalhães Lima, o culminar de todo o seu viver, a síntese que encerra, superiormente, o Criador e a Criatura, englobando, nesta, toda a humanidade, todos os seres vivos, todas as areias, fragas, campos e serras. De fora parece quedar-se a cidade moderna, antro de vaidades e riquezas, artefacto industrial gerador de misérias morais e sociais, lugar onde "todos nos desconhecemos, evitamos e isolamos, quando não nos atropelamos"21. Sem se afastar de Deus, antes procurando-o, a religião limiana aproxima-se assim do pampsiquismo anteriano, tão bem descrito pelo poeta filósofo ao seu assumido discípulo22, e não se alimenta de

certos bolores das sacristias, superstições carunchosas e hipocrisias parasitárias, […nem de] batinas em debandada que, já esfarrapadas por diversas aventuras anteriores, cobriam mal a boçalidade de sacerdotes muito mais dedicados à sordidez e à impostura do que a Cristo.23

Esta religião, cantada em tantos livros de Jaime Lima, mas sobretudo nas Rogações de Eremita24 ou nos Salmos do Prisioneiro25, bem mais belos que os de David, é uma religião de amor,

que por amor dá o exemplo e do exemplo vai à compaixão, e ao perdão e à redenção dos ignorantes e transviados.26
A religião é só isto; ténue e invisível fio prendendo-nos à vida espiritual imperecível. Que importa encontrá-la no amor da árvore, da flor, do velho, da criança, do mísero, do mar ou da montanha? Viver é senti-lo.27

Tudo o resto gira em torno deste sentir religioso, e todo o seu pensamento, incida ele sobre a democracia, o liberalismo ou a ideia de nação, inscreve-se nesta matriz idealista, de abnegação e de renúncia no Outro. Como dizia numa carta a António Sérgio,

Entre o Santo e o filósofo, e, por maioria de razão, entre o Santo e o regedor, ainda que o regedor se chame Péricles ou Napoleão, ficarei com o Santo. Porque o Santo é o mais fiel intérprete de Deus, e a ordem do Mundo, como a ordem da alma, só em Deus encontrará filiação assaz consistente para a manter.28

Em 17 de Junho de 1934, pouco antes de completar 75 anos de vida, juntaram-se em Eixo centenas de pessoas, numa sentida homenagem a Jaime de Magalhães Lima. Entre os oradores destacavam-se Joaquim de Carvalho, insigne mestre da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, e João da Silva Correia, director da Faculdade de Letras de Lisboa.

Viria a falecer ano e meio depois desta manifestação cívica, no dia 25 de Fevereiro de 1936, na sua Quinta do Vale do Suão, por ele crismada de S. Francisco de Assis.

1 O Movimento das Artes e Ofícios (Arts and Crafts Movement), fundado em 1888 na Inglaterra, defendia a produção manual, valorizando a prática artesanal da Idade Média e rejeitando a produção em série da época industrial. William Morris (1834-1896) e John Ruskin (1819-1900) foram dois dos seus principais mentores. Ruskin, "um violento tory da velha escola", como ele próprio se definia na primeira página de Praeterita, a sua autobiografia, ou o "inovador retrógrado" na boca dos seus adversários, nem por isso deixou de inspirar os fundadores do Partido Trabalhista inglês (1906), com a mensagem política de duas das suas obras, Unto this Last e Sesame and Lilies, ou de contribuir para a formação do líder nacional indiano Mohandas Karamchand Gandhi. As características do reformismo social inglês, em que se integravam homens como Morris ou Ruskin, vestia capa evangélica e pretendia reconciliar-se com a lição social do cristianismo primitivo, aproximando-se, por isso, do franciscanismo. Ver COMPAGNON, Antoine – A hue et à dia [Prefácio]. In RUSKIN, John – Sésame et les Lys. Bruxelles: Editions Complexe, 1987, p. 7-24.

2 Eça de Queirós, que casara no Porto com uma irmã do 6º conde de Resende, é visita da Quinta do Mosteiro, aquando das suas passagens por Portugal. Esta propriedade, onde ainda hoje residem duas trinetas de José Estêvão, serviu-lhe de cenário para a sua quinta de Refaldes da Correspondência de Fradique.

3 Carta de Antero de Quental a Jaime Lima, datada de 13 de Outubro de 1886; ver RAMOS, Aníbal (1976a) – Cartas de Antero de Quental a Jaime de Magalhães Lima segundo o texto original. Arquivo do Distrito de Aveiro. Aveiro. vol. 42, nº 165 (1976), p. 7.

4 LIMA, Jaime de Magalhães – Côro dos coveiros. Porto: Edições Ilustradas Marques Abreu, 1923. p. 19.

5 Ver supra, nº 3, p. 11-12.

6 Esta carta, datada de 15 de Março de 1889, encontra-se no Museu de Tolstoi, em Moscovo, e foi publicada em RAMOS, Aníbal – Leão Tolstoi, Jaime de Magalhães Lima, William B. Edgerton e o "Arquivo do Distrito de Aveiro". Arquivo do Distrito de Aveiro. Aveiro. Vol. 42, n.º 167 (1976), p. 173-174.

7 LIMA, Jaime de Magalhães – Vozes do meu lar. Coimbra: França Amado, 1902, p. 73.

8 Ver supra nº 3, p. 20-21.

9 Carta de Antero datada de Vila do Conde, 9 de Fevereiro de 1890. Ver supra nº 3, p. 23.

10 Este estadista, que marcou toda a vida política portuguesa nos vinte anos que antecederam a República, nasceu em Oliveirinha, concelho de Aveiro. Aos 17 anos, com Manuel Firmino de Almeida Maia, fundou O Campeão do Vouga, o primeiro jornal aveirense, que começou a publicar-se em 14 de Fevereiro de 1852 e que, em 12 de Novembro de 1859, passou a intitular-se Campeão das Províncias. Foi seu primeiro redactor principal José Maria de Almeida Teixeira de Queirós, pai de Eça de Queirós.

11 LIMA, Jaime de Magalhães – S. Francisco de Assis: Servo e menor. Coimbra: França Amado, 1908.

12 Paul Sabatier (1858-1928), teólogo e pastor protestante francês, é o autor de uma Vida de S. Francisco de Assis, escrita em resposta a uma missão intelectual quase imposta pelo seu mestre Ernesto Renan. A obra, publicada em França em 1893 e traduzida em várias línguas, é considerada uma das melhores biografias do Poverello e fruto de um trabalho árduo e sério de investigação, com base em documentos inéditos descobertos nos arquivos italianos. A importância e o impacto desta obra, bem como o currículo de Sabatier, professor de História Eclesiástica na Faculdade de Teologia da Universidade de Estrasburgo, cidadão honorário de Assis, membro da Academia Real de Roma, presidente honorário da Sociedade Internacional de Estudos Franciscanos e doutor "honoris causa" pelas Universidades de Oxford, Aberdeen e Edimburgo, não evitou a sua inclusão no Index.

13 Alguns títulos de periódicos ingleses, respigados de citações na sua obra: The Christian Commonwealth, Daily Chronicle, Glasgow Herald, Hibbert Journal, Manchester Guardian, Millgate Monthly, Spectator, Times.

14 LIMA, Jaime de Magalhães – A guerra: Depoimentos de herejes. Coimbra: F. França Amado, 1915, p. 11.

15 Idem, p. 20.

16 LIMA, Jaime de Magalhães (1986) – Entre pastores e nas serras. [Aveiro]: Portucel, 1986, p. 16.

17 Afirmava Sérgio, na Pela Grei de Janeiro de 1918: "O ideal da Democracia, em suma, é o governo da nação por elites naturais, criadoras da opinião pública e executantes da opinião pública; o governo da persuasão pelo escol da inteligência." In SÉRGIO, António – Ensaios I. 3.ª ed. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1980. p. 232.

18 LIMA, Jaime de Magalhães – Via redemptora. Coimbra: França Amado, 1905. p. 172-173.

19 LIMA (1986), p. 17-18.

20 LIMA, Jaime de Magalhães – Apóstolos da Terra. Coimbra: Typographia França Amado, 1906, p. VII.

21 LIMA, Jaime de Magalhães – O amor das nossas coisas e alguns que bem o serviram: Ramalho, Camilo, Eça, Antero, Oliveira Martins, Manuel da Silva Gaio, Lopes Vieira e Correa de Oliveira. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1933, p. 56.

22 Carta de Antero de Quental a Jaime de Magalhães Lima, datada de Vila do Conde, 14 de Novembro de 1886. Ver supra, nº 3, p. 12.

23 Ver supra, nº 21, p. 6.

24 LIMA, Jaime de Magalhães – Rogações de Eremita. Porto: Casa Editora de A. Figueirinhas, [1910]. 123 p.

25 LIMA, Jaime de Magalhães – Salmos do Prisioneiro. Coimbra: F. França Amado, 1915. 59 p.

26 LIMA, Jaime de Magalhães – S. Francisco de Assis: servo e menor. Coimbra: França Amado, 1908, p. 63.

27 Ver supra, nº 7, p. 202-203.

28 LIMA, Jaime de Magalhães – Santos, filósofos e regedores. In Lusitânia. Lisboa. Vol. 2 (1924), p. 122. Carta de Jaime Lima a António Sérgio.

3 comentários:

Anónimo disse...

Belíssimas biografias de Jaime Magalhães Lima e José Estêvão.

Uma adenda apenas: JML criou, na sua Quinta de S. Francisco, "só" um dos mais espectaculares arboretos da Europa, sobretudo no que aos eucaliptos diz respeito. Património de valor incalculável no qual está sediado hoje um instituto de investigação florestal.

Recomendo uma obra muito recente: "Eucaliptos Centenários da Quinta de S. Francisco" (bilingue), de Lísia Lopes (ed. Raíz, 2006).

Abraço

Gundibaldo

Manuel Carvalho disse...

Obrigado pela visita. Conheço pessoalmente esse maravilhoso arboreto, numa visita que fiz há anos ao centro de investigação da Portucel. Agradeço a referência bibliográfica, que desconhecia. Em 1920, JML publicou uma pequena brochura de 93 p., intitulada "Eucalyptos e Acacias: Vinte annos de experiencias".
Um abraço

Unknown disse...

O seu texto é muito importante para a minha pesquisa. Quero fazer um pós doc sobre Jaime e adorei as suas aberturas no mundo complexo deste escritor fenomenal. Obrigada.