segunda-feira, 9 de julho de 2007

ANDOEIROS: o barro das marinhas de Aveiro

ANDOEIRO (microtopónimo da freguesia de S. Bernardo, concelho de Aveiro), ANDOEIROS (microtopónimos nas freguesias de Esgueira e Vera Cruz do concelho de Aveiro), AGRA DOS ANDOEIROS (na freguesia de Esgueira, concelho de Aveiro), ENCOSTA DOS ANDOEIROS (na freguesia de Esgueira, concelho de Aveiro) RUA DOS ANDOEIROS (no lugar das Agras, freguesia da Vera Cruz, concelho de Aveiro).

«Andoeiro», de «ândoa» + -eiro, é o sítio onde existe a «ândoa», apelativo aveirense para uma espécie de barro azulado que se extraía junto à Ria e servia para aplicar no fundo dos cristalizadores das marinhas. Os dicionários registam a forma «andoa» que não aparece em Aveiro, sendo certo que esta fala é uma loquela da salicultura aveirense, não aflorando em nenhuma outra região do País, nem nas restantes línguas românicas.
A voz «andoa», que os nossos dicionaristas consideram de «origem obscura», poderá ser uma forma regressiva do verbo «andoar», e não a origem deste verbo, geralmente explicado como uma formação de «andoa + -ar».
A nossa conjectura assenta no facto de fazer pouco sentido a permanência de uma voz para «barro», circunscrita à zona das marinhas de Aveiro, sem que lhe encontremos uma possível etimologia, mesmo a nível de substratos.
Em nossa opinião estamos perante uma metonímia, em que um verbo, designando uma determinada operação da safra salineira, passaria a designar o material utilizado, através de um novo substantivo, obtido desse mesmo verbo por derivação regressiva.
O dicionarizado «andoa», sendo paroxítono, exigiria a forma *andona, o que a fala proparoxítona aveirense dispensa, pelo que o nosso ponto de partida, para tentar encontrar uma possível origem para esta fala, será a voz «ândoa», como se pronuncia localmente (Dias, 1996: 24).
E, para chegarmos ao nosso objectivo, nada melhor que dar a palavra a um profundo conhecedor das saliculturas nacional, internacional e aveirense em particular, para que a voz do especialista** nos explique o que seria esse «andoar»:

A operação denominada andoar, consiste em estender uma camada fina de andoa por sobre o fundo dos cristalisadores, um pouco gretado pela retracção do terreno, apezar das repetidas circiadellas que se lhe deram. Para se andoar uma salina pulverisa-se primeiro o barro sobre o pavimento duro das eiras, e leva-se em seguida para a parte superior dos meios de baixo, onde os marnotos fazem com elle caldeirinhas, casulas, que enchem com a água dos meios de cima. N’esta água dilue-se a própria andoa até ficar em massa muito rara. Chegada a este ponto dá-se com ella uma barrela aos cristalizadores; quer dizer, estende-se pela sua superfície em camada muito fina. Tal é a primeira operação que se pratica no dia em que se deita a marinha (Alcoforado, 1877: 64; mantivemos a grafia do original).
Enriquecidos pelas explicações de Maia Alcoforado, estamos agora melhor preparados, para procurar uma resposta credível, que ilumine a obscuridade dos nossos dicionários.
O latim popular carregou-se de neologismos que, em muitos casos «são formações derivadas com auxílio de prefixos e sufixos», neste último caso com recurso privilegiado aos sufixos diminutivos. Isto mesmo acontece em relação aos verbos, frequentemente alargados por meio dos sufixos -ulare, -icare, -itare e -escere. Foram fenómenos deste tipo os responsáveis, por exemplo, da substituição do latim clássico miscere «misturar» pelo latim popular misculare (Vasconcelos, 1977: 245), precisamente o tipo de formação que irá explicar o verbo «andoar» da loquela marnoteira, cuja grafia correcta, como veremos, deveria ser «anduar».
Quanto a nós, «andoar» provirá do latim *pandulare (<pandere «estender»), depois da aférese do p- inicial, que podia resultar do cruzamento de *panduar com «andar», e da queda do -l- intervocálico. Teríamos, assim, *(p)andu(l)ar(e) > «anduar», com a grafia correcta, donde, por derivação regressiva, teria saído a fala «ândua» e não «ândoa», referida ao material usado pelos marnotos na operação de «anduar» [estender a andar, andar a estender], acima descrita por Alcoforado. A aférese do p- também podia atribuir-se ao substrato celta, mas não podemos esquecer que o lusitano é uma das poucas línguas célticas, ou pré-célticas, a preservar o p- inicial (Schmitd, 1985: 338).
Na Figueira da Foz esta operação é designada pelo verbo «barrar», de «barro» + -ar (Nogueira, 1935: 83).

ALCOFORADO, M[anuel] da Maia (1877-1878) – A indústria do sal. Museu Technologico. Lisboa: Lallement Frères Typ. N.º 2 (Jul.1877) a N.º 7 (Jan.1878), p. 29-124.
DIAS, Diamantino (1996) – Glossário: Designações relacionadas com as marinhas de sal da Ria de Aveiro. Aveiro: Câmara Municipal. 97 p. ISBN 972-9137-24-2.
GEPB: ver Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira.
GRANDE ENCICLOPÉDIA Portuguesa e Brasileira. Lisboa-Rio de Janeiro: Editorial Enciclopédia, [1935-1960]. 40 vol.
NOGUEIRA, R. de Sá (1935) – Subsídios para o estudo da linguagem das salinas. Lisboa: [s.n.]. p. 75-144, [2], [8 ilust.]. Separata de «A Língua Portuguesa», vol. 4.
SCHMIDT, Karl Horst (1985) – A contribution to the identification of Lusitanian. In HOZ, Javier de, edit. – Actas del III Coloquio sobre lenguas y culturas paleohispanicas (Lisboa, 5-8 Noviembre 1980). Salamanca: Ediciones Universidad. p. 319-341.
VASCONCELOS, Carolina Michaëlis de (1977) – Lições de Filologia Portuguesa: segundo as prelecções feitas aos cursos de 1911/1912 e de 1912/1913, seguidas das lições práticas de português arcaico. Lisboa: Dinalivro, [1977]. 441 p.


** Manuel da Maia Alcoforado, o autor a que nos referimos, foi um brilhante aluno da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, que não ascendeu à cátedra por entretanto ter sido vítima de doença grave. Foi o fundador e autor da revista Museu Technologico, tendo falecido antes de poder terminar o programa que impusera a si próprio. A maior parte dos números publicados tratam da salicultura nacional e estrangeira, com especial aprofundamento da de Aveiro, onde tinha salinas, e da de outras regiões do País que expressamente visitou, mostrando o significado que para ele tinha a ciência (vd. GEPB, 15: 954-955, s.v. «MAIA ALCOFORADO, Manuel da»).

sexta-feira, 6 de julho de 2007

DOSSÃOS, LAÇÕES, DEZA, DOZÓN, PORTO DO SON [Porto Dozón]

DOSSÃOS (freguesia do concelho de Vila Verde, distrito de Braga); LAÇÕES (lugar da freguesia e concelho de Oliveira de Azeméis, distrito de Aveiro).
DEZA (comarca e rio da Galiza); DOZÓN (lugar da freguesia de Dozón, concelho de Dozón, província de Pontevedra; freguesia do concelho de Dozón; concelho da província de Pontevedra); PORTO DE SON (lugar da freguesia de Noal, concelho de Porto de Son, província da Corunha; concelho da província da Corunha).

Pede-me um leitor que interprete a origem do topónimo “Lações”, actualmente inserido na área urbana da cidade de Oliveira de Azeméis, no distrito de Aveiro. A pesquisa efectuada, e a sua ligação a “Dossãos”, permitem-me dar mais uma achega à postagem publicada por Calidónia no seu blogue, no passado dia 2 de Maio.

No Minho, identificando uma freguesia do concelho de Vila Verde, no distrito de Braga, temos o topónimo Dossãos que deveria ser Doçãos, se considerarmos as ocorrências registadas documentalmente: Dezaos em 1220 e 1258; Duçães em 1290; de Çãaes [por Doçãaes] em 1320; Daçaaes em 1371; Doçãaos em 1400 e 1424; Doçãos em 1528 (Costa, 1959: vol. 2, p. 180).
Na freguesia e concelho de Oliveira de Azeméis, no distrito de Aveiro, temos também um "Lações" que é uma evolução popular de Doçãos, correspondendo ao topónimo Dezanos que aparece citado num documento de 922 (LP-1, p. 120; DC25), entre Vila Chã e as vilas de Santiago de Riba-Ul e Oliveira. A sequência textual facilita a identificação dos topónimos, que se integravam no território de Abranca (actual Cristelo, na freguesia da Branca?):

«De Abranca alias ecclesias prenominatas Sancto Petro de Villa Plana cum suos dextros integros et suas adiectiones. Et villa de Dezanos per suos terminos antiquos et sua ecclesia vocabulo Sancti Michaelis et suos dextros integros. Et in Ripa de Ul ecclesia Sancti Iacobi et suos dextros integros et villa Olivaria ecclesia vocabulo Sancti Michaelis cum suos dextros integros et suas adiectiones.»

Tradução: «[Do território] de Branca [Cristelo, freguesia da Branca] outras igrejas chamadas São Pedro de Vila Chã [Vila Chã de S. Roque, freguesia que ainda hoje tem S. Pedro por orago], com os seus destros [ou passais, correspondendo a parcelas de terreno cultivadas pertencentes à paróquia] íntegros [livres de quaisquer encargos] e as suas pertenças. E a vila de Dezanos [actual “Lações”], pelos seus termos antigos e a sua igreja chamada S. Miguel, e seus destros íntegros. E em Riba de Ul a igreja de S. Tiago [actual Santiago de Riba-Ul] e seus destros íntegros e na vila [de] Oliveira [de Azeméis] a igreja chamada de S. Miguel [continua a ser o orago desta freguesia] com os seus destros íntegros e as suas pertenças.»

Com alguma lógica, A. de Almeida Fernandes (1999: 245, s.v. “Doções”) considera que estes topónimos têm por base dezanos, o gentílico do território medieval galego de Deza, actual comarca do mesmo nome, apontada como origem dos migrantes fundadores das duas povoações portuguesas, uma no território portucalense (“Dossãos”) e a outra na terra de Santa Maria (Dezanos, actual “Lações”).
Curiosamente, a evolução d- > l-, detectada na passagem de Dezanos a “Lações, é um fenómeno que encontramos episodicamente na evolução do latim arcaico para o latim clássico, como nos casos de dacruma > lacrima “lágrima”, dautia > lautia “presentes oferecidos aos embaixadores”, dingua > lingua “língua”. Também se verificam alguns casos em que -d- e -l- alternam em formas com uma origem comum, como no latim odor “odor” e olor “olor” (de oleo), udus “húmido” e uligo “humidade”, sedeo “eu estou sentado” e solium “assento, trono” (por alternância vocálica) (Niedermann, 1945: 119-120).
A ligação da terra portucalense ao território de Deza comprova-se por documentos do século X como, por exemplo, os números 66 e 76, respectivamente dos anos 952 e 959, dos
Portugaliae Monumenta Historica: Diplomata et Chartae, envolvendo uma permuta de propriedades entre Bermudo Afonso e sua tia Mumadona Dias, a fundadora do mosteiro de Guimarães. Esta senhora tinha propriedades «que sunt territorio galatie in Valle Deza» (doc. 66, ano 952), bens identificados (doc. 76, ano 959) como «villa de Portus in Dezza» (Herculano, 1867: 38 e 46), possivelmente o actual Porto de Carrio, na freguesia de Losón, concelho de Lalín, comarca de Deza.

Quanto ao topónimo Deza, corónimo de um território medieval, actual comarca galega, mas também um hidrotopónimo que identifica um rio da mesma região, já o encontramos em documentos suevos do século VI, como sejam as actas do concílio de Lugo de 569, em que aparece o Comitatus Deza, e do concílio de Braga de 572, com uma descrição pormenorizada dos termos do Comitatus Decensis (Risco, 1796: 343 e 347), uma clara manifestação da organização administrativa dos germanos. É por isso de rejeitar a opinião expressa na EGU (vol. 7, p. 264) de que a comarca e o próprio rio teriam recebido o nome dos senhores de Deza; o contrário é que é historicamente válido.
A interpretação que encontramos para a voz
Deza faz recuar o topónimo aos primeiros indo-europeus que teriam chegado ao local, aí estabelecendo o seu território. A ligação indo-europeia não a encontrámos em nenhuma das actuais falas célticas, mas sim na vetusta língua sânscrita em que a voz deśá significava «localidade, terra de naturalidade, lugar; região, província, país, nação».

Resta-nos o problema dos topónimos galegos Dozón e Porto do Son (uma infeliz tradução de Dozón) [Porto de Doçon > Porto de Oçon (queda do -d- intervocálico) > Porto d'Oçon (resolução da crase) > Porto Doçon] . No sânscrito encontramos as falas dāśa ou dāsa, com o significado de “pescador, barqueiro”, que poderiam responder ao topónimo costeiro, mas que não se ajustam às condições geográficas de Dozón. A única probabilidade que nos parece razoável, tendo em conta os elementos recolhidos, centra-se no possível nome do possuidor, que poderia ser um Donazano, antropónimo que encontrámos num documento datado de 1001 (LP-3: 179) e que, em galaico-português, evoluiria perdendo os dois -n- intervocálicos.

COSTA, Avelino Jesus da (1959) ─ O Bispo D. Pedro e a Organixação da Diocese de Braga. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade. 2 vol.
COSTA, Avelino de Jesus da; VENTURA, Leontina; VELOSO, M. Teresa (eds.) (1977-1979) ─
Livro Preto da Sé de Coimbra. Coimbra: Arquivo da Universidade de Coimbra. 3 vol. Citados por LP-1, LP-2 e LP-3.
EGU – Enciclopedia Galega Universal. Ed. de Bieito Ledo Cabido. Vigo: Ir Indo Edicións, 1999-2006. 16 vol. ISBN 84-7680-288-9.
FERNANDES, A. de Almeida (1999) — Toponímia Portuguesa: Exame a um dicionário. Arouca: Associação para a Defesa da Cultura Arouquense. 576 p. ISBN 972-9474-13-3.
HERCULANO, Alexandre (ed.) ─
Portugaliae Monumenta Historica: a saeculo octavo post christum usque ad quintumdecimum. Diplomata et Chartae. Lisboa: Academia Scientiarum, 1867-1873. 564 p. Citado por DC + número do documento.

LIVRO PRETO da Sé de Coimbra
. (1977-1979) Ed. de COSTA, Avelino de Jesus da; VENTURA, Leontina; VELOSO, M. Teresa. Coimbra: Arquivo da Universidade de Coimbra. 3 vol. Citados como LP-1, LP-2 e LP-3.
NIEDERMANN, Max (1945) ─
Précis de phonétique historique du latin. Nouveau tirage. Paris: Librairie C. Klincksieck. 279 p.
RISCO, Manuel (1796) ─
España Sagrada: Tomo XL. Antiguedades de la ciudad y S.ta Iglesia de Lugo [...]. Madrid: en la oficina de la viuda é hijo de Marin, 1796. [12], 432 p.